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     Date: 14 Aug 2003
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     Edição especial da página www.paulocoelho.com.br , venda proibida








     É  importante dizer  alguma coisa  sobre o  fato de O Alquimista ser um
livro simbólico, diferente de O  Diário  de um Mago, que foi um  trabalho de
não-ficção.
     Durante  onze anos de minha vida  estudei Alquimia.  A simples idéia de
transformar metais em ouro,  ou de  descobrir o Elixir da Longa Vida, já era
fascinante demais para passar  despercebida  a qualquer  iniciante em Magia.
Confesso que  o Elixir da Longa Vida  me seduzia  mais: antes de  entender e
sentir  a  presença  de  Deus,  a  idéia de que  tudo ia acabar um  dia  era
desesperadora. De  maneira  que,  ao saber da  possibilidade de conseguir um
líquido  capaz  de  prolongar  por muitos  anos  minha  existência,  resolvi
dedicar- me de corpo e alma à sua fabricação.
     Era uma  época de  grandes  transformações sociais ­ o começo dos  anos
setenta ­  e não  havia ainda  publicações  sérias  a  respeito de Alquimia.
Comecei,  como um dos personagens do livro, a gastar  o  pouco dinheiro  que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do  meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou três pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente  à Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci também  muitas outras pessoas  que  se diziam  alquimistas,
possuíam  seus laboratórios,  e prometiam  me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
     Mesmo  com  toda a  minha  dedicação, os  resultados eram absolutamente
nulos. Não acontecia  nada do que os manuais de  Alquimia  afirmavam  em sua
complicada linguagem. Era  um sem-fim de  símbolos, de dragões, leões, sóis,
luas e mercúrios, e eu sempre tinha a impressão de estar no caminho  errado,
porque a linguagem simbólica permite uma gigantesca  margem de equívocos. Em
1973,  já  desesperado com  a  ausência  de progresso,  cometi  uma  suprema
irresponsabilidade.  Nesta  época  eu  era  contratado  pela  Secretaria  de
Educação de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele  estado, e  resolvi
utilizar meus alunos em laboratórios teatrais que  tinham como tema  a Táboa
da Esmeralda.  Esta  atitude, aliada  a algumas  incursões  minhas nas áreas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na própria carne a verdade do provérbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
     Passei os próximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cética
com  relação a  tudo que dissesse  respeito à  área  mística.  Neste  exílio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que  só aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da  alma, que não  devemos fugir de nosso
próprio destino, e que a mão de Deus é infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
     Em 1981, conheci  RAM e o meu  Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho  que está traçado  para mim.  E  enquanto ele  me  treinava em  seus
ensinamentos,  voltei  a  estudar  Alquimia por  minha própria conta.  Certa
noite, enquanto  conversávamos depois de uma  exaustiva sessão de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tão vaga e tão complicada.
     ­ Existem três tipos  de alquimistas ­ disse meu Mestre. ­  Aqueles que
são vagos porque não sabem o que estão falando; aqueles que são vagos porque
sabem  o que estão  falando, mas sabem também  que a linguagem da Alquimia é
uma linguagem dirigida ao coração, e não à razão.


     ­ E qual o terceiro tipo? ­ perguntei.
     ­  Aqueles  que jamais ouviram  falar em Alquimia, mas que conseguiram,
através de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
     E com isto, meu  Mestre ­ que pertencia  ao segundo tipo ­ resolveu  me
dar aulas  de  Alquimia. Descobri que a  linguagem simbólica, que  tanto  me
irritava  e  me desnorteava,  era a única maneira  de  se  atingir a Alma do
Mundo,  ou o  que  Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a  Lenda
Pessoal, e  os  Sinais de  Deus, verdades que meu raciocínio intelectual  se
recusava a aceitar  por causa  de  sua simplicidade. Descobri que atingir  a
Grande  Obra não é tarefa de poucos, mas de todos os seres  humanos  sobre a
face da Terra. É claro que  nem sempre a  Grande Obra vem sob a  forma de um
ovo e de um  frasco com líquido, mas todos nós podemos ­ sem qualquer sombra
de dúvida ­ mergulhar na Alma do Mundo.
     Por isso, "O Alquimista" é também  um  texto  simbólico. No decorrer de
suas páginas, além de  transmitir tudo  o  que aprendi a  respeito,  procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway,  Blake, Borges (que também utilizou  a história persa  para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.

     Para  completar este  extenso  prefácio,  e  ilustrar  o que meu Mestre
queria  dizer com o terceiro tipo de  alquimistas, vale  a pena recordar uma
história que ele mesmo me contou no seu laboratório.
     Nossa Senhora, com  o Menino Jesus  em seus braços,  resolveu  descer à
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres  fizeram uma grande
fila, e  cada um  chegava diante  da  Virgem  para prestar sua homenagem. Um
declamou belos  poemas,  outro  mostrou suas  iluminuras  para a  Bíblia, um
terceiro  disse  o  nome de todos os  santos. E assim por diante, monge após
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
     No último lugar  da  fila,  havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os sábios textos da época. Seus pais eram  pessoas
simples, que trabalhavam num velho  circo das  redondezas, e  tudo  que  lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
     Quando  chegou  sua   vez,  os  outros   padres  quiseram  encerrar  as
homenagens, porque  o antigo malabarista não  tinha  nada de importante para
dizer, e podia  desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no  fundo  do
seu coração, também ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
     Envergonhado,  sentindo o olhar reprovador  de seus  irmãos,  ele tirou
algumas  laranjas   do  bolso  e  começou  a  jogá-las  para  cima,  fazendo
malabarismos, que era a única coisa que sabia fazer.
     Foi só neste instante que  o Menino Jesus  sorriu,  e começou  a  bater
palmas no colo de Nossa  Senhora.  E foi  para ele que  a Virgem estendeu os
braços, deixando que segurasse um pouco o menino.












     Para J.
     Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.







     Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
     chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
     Tinha ela uma irmã, chamada Maria, que sentou-se aos pés do Senhor, e
     ficou ouvindo seus ensinamentos.
     Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviços.
     Então aproximou-se  de Jesus e disse: ­ Senhor! Não te importas  de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
     irmã que venha ajudar-me!
     Respondeu-lhe o Senhor:
     ­ Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
     "Maria,  entretanto,  escolheu  a  melhor  parte, e  esta não lhe  será
tirada."








     O Alquimista  pegou  um livro  que alguém na  caravana havia trazido. O
volume  estava  sem capa, mas  conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas páginas, encontrou uma história sobre Narciso.
     O Alquimista conhecia  a  lenda de  Narciso, um belo rapaz que todos os
dias  ia  contemplar  sua própria beleza  num lago. Era tão fascinado por si
mesmo  que certo  dia  caiu dentro do  lago e morreu  afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
     Mas não era assim que Oscar Wilde acabava a história.
     Ele dizia  que quando  Narciso morreu,  vieram as Oréiades  ­ deusas do
bosque  ­ e viram o lago transformado, de um lago de  água doce, num cântaro
de lágrimas salgadas.
     ­ Por que você chora? ­ perguntaram as Oréiades.
     ­ Choro por Narciso ­ disse o lago
     ­ Ah, não nos espanta que você chore por Narciso ­ continuaram  elas. ­
Afinal  de contas,  apesar de  todas  nós sempre  corrermos atrás dele  pelo
bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
     ­ Mas Narciso era belo? ­ perguntou o lago.
     ­ Quem mais do que você poderia  saber disso? ­ responderam, surpresas,
as Oréiades.
     ­ Afinal  de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos  os
dias.
     O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
     ­  Eu choro  por Narciso,  mas jamais  havia percebido  que Narciso era
belo.
     "Choro  por  Narciso porque,  todas  as vezes que ele  se deitava sobre
minhas margens eu podia ver,  no  fundo dos seus olhos, minha própria beleza
refletida".

     "Que bela história", disse o Alquimista.





     O rapaz chamava-se Santiago. Estava começando a escurecer quando chegou
com  seu  rebanho  diante  de  uma  velha igreja abandonada.  O  teto  tinha
despencado  há muito tempo, e um enorme sicômoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
     Resolveu  passar a noite ali.  Fez  com que todas as ovelhas  entrassem
pela porta em ruínas, e então colocou  algumas tábuas de modo  que  elas não
pudessem fugir  durante a noite. Não haviam lobos naquela região,  mas certa
vez  um  animal havia escapado durante  a noite, e  ele gastara  todo o  dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
     Forrou o chão com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro.  Lembrou-se, antes de dormir, que precisava começar  a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confortáveis durante a noite.
     Ainda  estava  escuro  quando acordou. Olhou para  cima,  e viu que  as
estrelas brilhavam através do teto semidestruído.
     "Queria  dormir  um pouco mais",  pensou ele. Tivera  o mesmo sonho  da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
     Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e começou a
acordar as ovelhas  que ainda dormiam. Ele havia  reparado  que,  assim  que
acordava, a maior parte dos  animais  também começava  a despertar. Como  se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida  à vida daquelas  ovelhas
que há  dois anos percorriam com ele a terra, em  busca  de água e alimento.
"Elas já se acostumaram  tanto  a mim que  conhecem meus horários", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que  podia ser  também o contrário:
ele que havia se acostumado ao horário das ovelhas.
     Haviam  certas  ovelhas,  porém,  que  demoravam  um  pouco  mais  para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada  qual pelo
seu nome. Sempre  acreditara  que as ovelhas  eram capazes de entender o que
ele  falava. Por isso  costumava às vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solidão e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as últimas novidades  que  via nas cidades por onde
costumava passar.
     Nos últimos  dois dias, porém, seu assunto  tinha  sido praticamente um
só: a  menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a  quatro  dias. Tinha estado apenas uma vez lá,  no  ano  anterior. O
comerciante era dono  de uma loja  de  tecidos, e  gostava sempre de ver  as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificações. Um  certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou lá suas ovelhas.






     "Preciso vender alguma lã", disse para o comerciante.
     A loja do  homem estava  cheia,  e o  comerciante  pediu  que  o pastor
esperasse  até o entardecer.  Ele sentou-se na  calçada da  loja e tirou  um
livro do alforje.
     ­  Não sabia que os  pastores são capazes de ler livros ­ disse uma voz
feminina ao seu lado.


     Era  uma moça  típica da região de Andaluzia, com  seus cabelos  negros
escorridos, e os olhos  que  lembravam  vagamente os  antigos conquistadores
mouros.
     ­ É porque as ovelhas ensinam mais  que os  livros ­ respondeu o rapaz.
Ficaram  conversando  por  mais de  duas horas.  Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era  igual ao outro. O
pastor contou dos  campos de Andaluzia, das  últimas novidades  que  viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por não precisar conversar sempre com
as ovelhas.
     ­ Como aprendeu a ler? ­ perguntou a moça a certa altura.
     ­ Como todas as outras pessoas ­ respondeu o rapaz. ­ Na escola.
     ­ E, se sabe ler, então por que é apenas um pastor?
     O rapaz  deu uma desculpa  qualquer para não responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a moça  jamais entenderia. Continuou  a contar suas
histórias  de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se  de
espanto  e surpresa.  À medida  que o tempo foi passando, o rapaz  começou a
desejar que aquele dia não acabasse nunca, que o pai da moça ficasse ocupado
por muito  tempo e o mandasse  esperar por três dias.  Percebeu  que  estava
sentindo uma coisa  que nunca havia sentido antes:  vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
     Mas  o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois,  pagou-lhe o que era  devido, e  pediu  que voltasse no ano
seguinte.





     Agora  faltavam apenas  quatro dias para chegar de novo à mesma aldeia.
Estava excitado  e  ao mesmo  tempo  inseguro: talvez a  menina  já  tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lã.
     ­ Não tem importância ­ disse o rapaz para as suas ovelhas. ­ Eu também
conheço outras meninas em outras cidades.
     Mas no fundo do seu coração,  ele  sabia  que tinha importância.  E que
tanto os pastores,  como  os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia alguém capaz de fazer com  que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.






     O dia começou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direção
ao sol. "Elas  nunca  precisam tomar uma decisão",  pensou ele. "Talvez  por
isso fiquem  sempre  juntos  de mim". A  única  necessidade  que as  ovelhas
sentiam era de água e de alimento. Enquanto o  rapaz conhecesse  os melhores
pastos  em Andaluzia,  elas seriam  sempre  suas  amigas. Mesmo que  os dias
fossem  todos iguais, com longas horas se  arrastando entre  o  nascer  e  o
pôr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um só livro  em suas  curtas
vidas, e  não conhecessem a língua  dos homens que contavam as novidades nas
aldeias.  Elas  estavam contentes  com água  e alimento, e isto  bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua lã, sua companhia, e ­ de vez em quando ­
sua carne.
     "Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
só iam  perceber  depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram  de confiar nos seus
próprios instintos. Só porque as conduzo ao alimento e à comida".
     O rapaz começou a estranhar seus próprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicômoro crescendo dentro, fosse  mal-assombrada. Tinha feito com
que  sonhasse um  mesmo  sonho pela  segunda  vez, e  estava  lhe  dando uma
sensação de raiva contra suas companheiras, sempre tão fiéis. Bebeu um pouco
de vinho que  havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou  contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria tão forte que não ia poder
     conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
verão. O calor durava até  a noite, e  durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando  o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do  peso,
sempre lembrava que por causa dele não havia sentido frio de manhã.
     "Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
então ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
     O  casaco  tinha  um motivo,  e  o  rapaz  também.  Em dois anos  pelas
planícies de Andaluzia ele já sabia  de  cor todas as  cidades  da região, e
esta  era a  grande razão de sua vida;  viajar. Estava  planejando  explicar
desta vez à menina porque um  simples  pastor  sabe ler: havia estado até os
dezesseis anos  num seminário.  Seus  pais queriam  que  ele fosse  padre, e
motivo de orgulho para  uma simples família camponesa, que trabalhava apenas
para comida e água, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e  teologia.
Mas  desde  criança  sonhava  em conhecer o  mundo,  e isto era  muito  mais
importante do que conhecer Deus ou os  pecados  dos homens.  Certa tarde, ao
visitar a família, havia tomado coragem  e dito para seu  pai que não queria
ser padre. Queria viajar.




     ­ Homens de todo o  mundo já passaram por esta aldeia, filho ­ disse  o
pai. ­ Vêm em busca de  coisas novas, mas continuam as  mesmas pessoas.  Vão
até  o morro conhecer o castelo e  acham  que  o passado  era  melhor que  o
presente.  Têm cabelos louros ou pele escura, mas são iguais  aos  homens de
nossa aldeia.
     ­ Mas não conheço  os castelos das terras de onde eles vêm ­ retrucou o
rapaz.
     ­ Estes  homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui ­ continuou o pai.
     ­ Quero conhecer as mulheres e as  terras de onde eles vieram ­ disse o
rapaz. ­ Porque eles nunca ficam por aqui.
     ­ Os homens  trazem a bolsa cheia de dinheiro  ­ disse mais  uma  vez o
pai. ­ Entre nós, só os pastores viajam.
     ­ Então serei pastor.
     O pai não disse mais nada.  No dia seguinte deu-lhe uma bolsa  com três
antigas moedas de ouro espanholas.
     ­ Achei certo  dia no campo.  Iam ser da Igreja, como  seu dote. Compre
seu rebanho  e  corra  o  mundo  até  aprender que  nosso  castelo é o  mais
importante, e nossas mulheres são as mais belas.
     E o abençoou. Nos olhos do pai ele  leu  também  a vontade de  correr o
mundo. Uma vontade  que  ainda vivia, apesar das dezenas de  anos que ele  a
tentou sepultar com água, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.






     O horizonte  se  tingiu  de vermelho, e depois  apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da  conversa com  o pai e sentiu-se  alegre;  tinha já  conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual àquela  que o  esperava
em  dois dias). Tinha um  casaco, um livro  que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, é que todo dia  realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia  vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando  cansasse  do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
     "Não sei  como buscam Deus no seminário", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que  possível, buscava  um  caminho diferente para andar.
Nunca  havia estado  naquela igreja antes, apesar de  haver  passado  tantas
vezes por ali. O mundo  era grande e inesgotável, e se  ele deixasse que  as
ovelhas o  guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema é que elas não se dão conta  de que estão fazendo
caminhos novos cada dia. Não percebem que os pastos mudaram, que as estações
são diferentes ­ porque estão apenas ocupadas com água e comida."
     "Talvez seja assim com todos nós" ­ pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
não  penso em outras  mulheres desde que conheci a  filha  do  comerciante".
Olhou  o céu,  e pelos seus cálculos estaria antes do almoço em  Tarifa.  Lá
poderia trocar  seu  livro por  um  volume mais grosso, encher a  garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto  para  encontrar a
menina, e não  queria pensar  na possibilidade de  outro pastor ter  chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mão.
     "É  justamente  a possibilidade de realizar um  sonho que torna a  vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o céu e apressava o passo.
Tinha  acabado  de  se  lembrar  que  em  Tarifa  morava  uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.




     A  velha conduziu o rapaz até um quarto no  fundo da casa,  separado da
sala  por uma cortina feita  de tiras de plástico colorido. Lá  dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, e duas cadeiras.
     A velha  sentou-se  e pediu  que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas mãos do rapaz e rezou baixo.
     Parecia uma reza cigana. O  rapaz  já  havia encontrado muitos  ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto não cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que  a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam também
que eles tinham pacto com demônios, e que raptavam crianças para servirem de
escravas em seus  misteriosos  acampamentos.  Quando  era  pequeno,  o rapaz
sempre tinha morrido  de medo  de ser raptado  pelos ciganos,  e  este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas mãos.
     "Mas  existe  a  imagem  do  Sagrado  Coração  de Jesus",  pensou  ele,
procurando ficar mais calmo. Não queria que sua mão começasse  a tremer  e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silêncio.
     ­ Que interessante ­ disse a velha, sem tirar os olhos da mão do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
     O rapaz estava ficando nervoso. Suas mãos começaram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mãos rapidamente.
     ­ Não vim aqui para ler as mãos ­ disse, já arrependido de  ter entrado
naquela casa. Pensou por  um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora  sem saber  de  nada. Estava  dando  importância demais  a  um  sonho
repetido.
     ­  Você veio saber de  sonhos ­ respondeu a velha. ­ E os sonhos  são a
linguagem  de  Deus.  Quando  ele  fala  a  linguagem  do  mundo,  eu  posso
interpretar.  Mas  se  ele  falar a linguagem  de  sua alma,  só  você  pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
     Mais  um  truque, pensou  o rapaz. Entretanto,  resolveu  arriscar.  Um
pastor  corre  sempre o risco dos  lobos  ou  da seca,  e  isto é que faz  a
profissão de pastor mais excitante.
     ­ Tive  o mesmo sonho  duas vezes seguidas ­ disse. ­ Sonhei que estava
num  pasto  com  minhas  ovelhas  quando aparecia uma criança, e começava  a
brincar  com os animais. Não gosto que mexam  nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crianças sempre conseguem mexer com os animais
sem que  eles se assustem. Não  sei porquê. Não sei como os  animais sabem a
idade dos seres humanos.
     ­ Volte  para  seu sonho  ­ disse  a velha. ­ Tenho uma panela no fogo.
Além disso você tem pouco dinheiro e não pode tomar todo o meu tempo.
     ­ A criança  continuava a  brincar com  as ovelhas  por  algum tempo  ­
continuou o rapaz, um  pouco  constrangido. ­  E de repente, me pegava pelas
mãos e me levava até as Pirâmides do Egito.
     O  rapaz  esperou um  pouco  para ver se  a velha sabia o  que eram  as
Pirâmides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
     ­ Então, nas Pirâmides do  Egito, ­ ele falou as três últimas  palavras
lentamente,  para que a velha pudesse entender bem ­ a criança me dizia: "se
você vier até aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.


     A velha continuou em silêncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
mãos do rapaz e estudá-las atentamente.
     ­ Não vou lhe cobrar nada agora ­ disse a velha. Mas quero um décimo do
tesouro, se você encontrá-lo.
     O rapaz riu. De felicidade. Então iria economizar o pouco  dinheiro que
tinha, por causa de  um sonho que  falava  em  tesouros escondidos! A  velha
devia ser mesmo uma cigana ­ os ciganos são burros.
     ­ Então interprete o sonho ­ pediu o rapaz.
     ­ Antes jure. Jure que você vai me dar a décima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
     O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado Coração de Jesus.
     ­ É um sonho da Linguagem do Mundo ­ disse ela. ­  Posso interpretá-lo,
e é uma interpretação muito difícil. Por isso acho que mereço minha parte no
seu achado.
     "E a interpretação  é esta:  você deve ir  até as Pirâmides  do  Egito.
Nunca  ouvi falar  delas, mas se  foi uma criança  que lhe mostrou, é porque
existem. Lá você encontrará um tesouro que lhe fará rico".
     O  rapaz ficou surpreso, e depois irritado. Não precisava ter procurado
a velha para isto.
     Finalmente lembrou-se de que não estava pagando nada.
     ­ Para isto eu não precisava perder meu tempo ­ disse.
     ­ Por isso lhe falei que seu sonho era difícil. As coisas  simples  são
as mais extraordinárias, e só os sábios conseguem vê-las. Já que não sou uma
sábia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mãos.
     ­ E como eu vou chegar até o Egito?
     ­  Eu  só interpreto sonhos. Não  sei transformá-los em  realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me dão.
     ­ E se eu não chegar até o Egito?
     ­ Eu fico sem pagamento. Não será a primeira vez.
     E a velha não disse mais nada. Pediu para que o rapaz saísse,  pois  já
tinha perdido muito tempo com ele.




     O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais  acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha várias providências a tomar: foi ao armazém arranjar
alguma comida,  trocou  seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se  num
banco da praça para saborear  o  vinho novo que  havia comprado. Era um  dia
quente,  e  o vinho, por um destes mistérios insondáveis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada  da cidade, no estábulo de
um novo amigo  seu. Conhecia muita  gente por aquelas  bandas ­  e  por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba  fazendo amigos novos, e não precisa
ficar com eles dia após dia. Quando a gente vê  sempre as mesmas pessoas ­ e
isto acontecia no seminário ­ terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de  nossas  vidas. E como  elas fazem parte de  nossas  vidas,  passam
também a querer modificar nossas vidas. Se a gente não for como elas esperam
ficar,  chateadas. Porque todas as pessoas tem a noção exata de como devemos
viver nossa vida.
     E  nunca  têm noção de como devem viver  as suas próprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que não sabia transformá-los em realidade.
     Resolveu  esperar  o  sol descer  um pouco,  antes  de seguir com  suas
ovelhas em  direção ao campo. Daqui a três  dias  iria estar com a filha  do
comerciante.
     Começou a  ler o livro que tinha conseguido com o padre de  Tarifa. Era
um  livro grosso,  que falava de um  enterro  logo na primeira  página. Além
disso, o nome dos personagens eram complicadíssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um  personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores não tivessem que ficar decorando nomes.
     Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, ­ e era boa, porque
falava  de um  enterro na neve,  o que lhe transmitia  uma sensação de  frio
debaixo daquele imenso sol ­  um velho sentou-se  ao seu  lado e  começou  a
puxar conversa.
     ­  O  que eles estão  fazendo? ­ perguntou  o velho, apontando  para as
pessoas da praça.
     ­ Trabalhando ­ respondeu o  rapaz, secamente, e  voltou a  fingir  que
estava concentrado  na leitura.  Na verdade, estava  pensando em tosquiar as
ovelhas na frente  da filha do  comerciante, para ela  atestar como  ele era
capaz de fazer coisas interessantes. Já havia imaginado esta cena uma porção
de vezes;  em todas elas, a menina ficava deslumbrada  quando ele começava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trás para frente. Também
tentava  se lembrar  de  algumas  boas  histórias para contar a ela enquanto
tosquiava  as ovelhas.  A  maior parte ele  tinha lido nos  livros, mas iria
contar  como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferença,
porque não sabia ler livros.
     O  velho, entretanto,  insistiu. Falou que estava cansado, com sede,  e
pediu um gole  de vinho  ao rapaz. O  rapaz ofereceu sua  garrafa;  talvez o
velho ficasse quieto.
     Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz  estava  lendo.  Ele pensou em ser rude e mudar de banco,  mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. Então estendeu o livro para
o  velho, por duas razões: a primeira é que não sabia pronunciar o título. E
a segunda era que, se o velho não soubesse ler, ia ele mesmo  mudar de banco
para não sentir-se humilhado.
     ­ Humm... ­ disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. ­ É um livro importante, mas é muito chato.
     O rapaz ficou surpreso.  O velho  também lia, e já lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.


     ­ É um livro que fala  o que quase todos os livros falam ­  continuou o
velho. ­ Da incapacidade que as pessoas têm de escolher seu próprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.


     ­ Qual é a maior mentira do mundo? ­ indagou surpreso o rapaz.
     ­  É  esta: em  determinado  momento de  nossa  existência,  perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta é a
maior mentira do mundo.
     ­ Comigo não aconteceu isto ­  disse o rapaz. ­  Queriam  que  eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
     ­ Assim é melhor ­ disse o velho. ­ Porque você gosta de viajar.
     "Ele adivinhou  meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava  o livro grosso, sem a  menor intenção de devolvê-lo. O rapaz notou
que ele  vestia  uma roupa estranha; parecia um árabe,  o  que não  era raro
naquela região. A África ficava a apenas algumas  horas da Tarifa; e  era só
cruzar  o pequeno  estreito  num  barco.  Muitas vezes  apareciam  árabes na
cidade, fazendo compras e rezando orações estranhas várias vezes por dia.
     ­ De onde é o senhor? ­ perguntou.
     ­ De muitas partes.
     ­ Ninguém pode ser de muitas partes ­ o rapaz falou. ­ Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um único lugar, de uma  cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
     ­ Então podemos dizer que eu nasci em Salém.
     ­  O rapaz não sabia onde era  Salém,  mas não quis  perguntar para não
sentir-  se humilhado  com  a  própria  ignorância. Ficou  mais  algum tempo
olhando a praça. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
     ­ Como está Salém? ­ perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
     ­ Como sempre esteve.
     Ainda não era uma pista. Mas sabia  que Salém não  estava em Andaluzia.
Senão, ele já a teria conhecido.
     ­ E o que você faz em Salém? ­ insistiu.
     ­ O que faço  em Salém? ­  o  velho pela  primeira vez  deu uma gostosa
gargalhada. ­ Ora, eu sou o Rei de Salém!
     As  pessoas dizem  coisas muito estranhas, pensou o  rapaz. Às vezes  é
melhor estar com as ovelhas, que  são caladas, e apenas  procuram alimento e
água. Ou é melhor estar com os livros, que contam  estórias incríveis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala  com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
     ­ Meu nome é Melquisedec ­ disse o velho. ­ Quantas ovelhas você tem?
     ­  O  suficiente  ­ respondeu  o rapaz. O velho  estava querendo  saber
demais sobre sua vida.
     ­ Então estamos diante de um problema. Não posso ajudá-lo enquanto você
achar que tem ovelhas suficientes.
     O  rapaz  se irritou. Não estava pedindo  ajuda. O  velho é  que  tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
     ­  Me devolva o  livro ­ disse. ­ Tenho que  ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.


     ­  Me dê um  décimo de suas ovelhas ­ disse o velho. ­  E eu lhe ensino
como chegar até o tesouro escondido.

     O rapaz  tornou então a lembrar-se do  sonho, e  de  repente tudo ficou
claro.  A velha  não tinha  cobrado  nada, mas  o velho ­ que era talvez seu
marido  ­  ia  conseguir arrancar  muito  mais  dinheiro  em  troca  de  uma
informação que não existia. O velho devia ser cigano também.
     Antes que o  rapaz dissesse  qualquer coisa, porém, o velho abaixou-se,
pegou um  graveto, e  começou a escrever na areia  da praça. Quando  ele  se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase  cegou o rapaz.  Mas num movimento  rápido demais para  alguém de  sua
idade, tornou a cobrir o  brilho com o  manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
     Na areia da  praça  principal da  pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua mãe.
     Leu  a história  de  sua  vida  até aquele  momento, as brincadeiras de
infância, as noites frias do seminário. Leu o nome da filha  do comerciante,
que não sabia. Leu coisas que jamais contara para alguém, como o dia  em que
roubou a  arma do  seu pai para  matar veados, ou sua primeira  e  solitária
experiência sexual.





     "Sou o Rei de Salém", dissera o velho.
     ­  Por  que  um  rei conversa  com  um  pastor? ­  perguntou  o  rapaz,
envergonhado e admiradíssimo.
     ­ Existem  várias razões. Mas vamos dizer que  a mais importante  é que
você tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
     O rapaz não sabia o que era Lenda Pessoal.
     ­  É aquilo  que você sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no começo
da juventude, sabem qual é sua Lenda Pessoal.
     "Nesta altura da  vida,  tudo  é claro, tudo é possível, e elas não têm
medo de sonhar  e desejar tudo aquilo que  gostariam de ver  fazer  em  suas
vidas.  Entretanto,  à medida  em  que o  tempo vai passando, uma misteriosa
força começa a tentar provar que é impossível realizar a Lenda Pessoal.
     O que o velho estava dizendo não fazia muito sentido para o  rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "forças misteriosas"; a filha  do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
     ­ São  as  forças que  parecem ruins, mas na  verdade estão ensinando a
você como  realizar  sua Lenda Pessoal. Estão preparando seu espírito  e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja você  quem for
ou o que  faça, quando quer com vontade alguma  coisa, é  porque este desejo
nasceu na alma do Universo. É sua missão na Terra.
     ­ Mesmo que  seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
     ­ Ou  buscar um tesouro. A Alma  do Mundo é alimentada pela  felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciúme. Cumprir sua Lenda  Pessoal
é a única obrigação dos homens. Tudo é uma coisa só.
     "E quando você  quer alguma coisa, todo  o Universo  conspira  para que
você realize seu desejo".

     Durante algum tempo ficaram em silêncio, olhando a praça  e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
     ­ Por que você cuida de ovelhas?
     ­ Porque gosto de viajar.
     Ele apontou um pipoqueiro, com  sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da praça.
     ­ Aquele  pipoqueiro também  sempre desejou viajar, quando criança. Mas
preferiu  comprar uma  carrocinha de pipoca,  juntar dinheiro durante  anos.
Quando estiver velho, vai  passar um  mês na África.  Jamais  entendeu que a
gente sempre tem condições para fazer o que sonha.
     ­ Devia ter escolhido ser um pastor ­ pensou em voz alta o rapaz.
     ­ Ele  pensou  nisto ­ disse  o velho. ­ Mas  os  pipoqueiros são  mais
importantes  que  os  pastores.  Os  pipoqueiros têm uma casa,  enquanto  os
pastores dormem  ao  relento.  As  pessoas  preferem  casar  suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
     O  rapaz  sentiu  uma  pontada  no   coração,  pensando   na  filha  do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.


     ­  Enfim, o que as  pessoas  pensam sobre pipoqueiros e sobre  pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
     O  velho folheou  o  livro,  e distraiu-se lendo  uma página.  O  rapaz
esperou  um  pouco,  e o interrompeu  da  mesma  maneira  como  ele  o havia
interrompido.
     ­ Por que você fala estas coisas comigo?
     ­ Porque você tenta viver sua Lenda Pessoal. E está a ponto de desistir
dela.
     ­ E você aparece sempre nestas horas?
     ­ Nem  sempre  desta forma,  mas jamais deixei  de  aparecer.  Às vezes
apareço sob a  forma de uma boa  saída,  uma boa  idéia. Outras  vezes,  num
momento crucial, faço as coisas ficarem mais fáceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas não nota isto.
     O velho contou que na semana passada ele tinha  sido forçado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir  em  busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou  num  rio,  e
tinha  quebrado  999.999  pedras em  busca  de uma esmeralda.  Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e só faltava uma pedra  ­ apenas UMA PEDRA  ­
para ele  descobrir sua esmeralda. Como ele tinha  sido  um homem  que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o  velho resolveu interferir.  Transformou-se
numa  pedra  que  rolou  sobre o pé do  garimpeiro.  Este,  com  a  raiva  e
frustração  dos  cinco anos perdidos, atirou  a pedra longe. Mas  atirou com
tanta força que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
     ­ As pessoas aprendem muito cedo sua razão de viver ­ disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. ­  Talvez seja por isso  que elas desistem tão
cedo também. Mas assim é o mundo.
     Então  o rapaz se lembrou que a conversa  havia começado com o  tesouro
escondido.
     ­  Os  tesouros  são  levantados da  terra pela  torrente  de  água,  e
enterrados  por estas mesmas  enchentes ­ disse  o  velho. ­ Se  você quiser
saber sobre seu tesouro, terá que me ceder um décimo de suas ovelhas.
     ­ E não serve um décimo do tesouro?
     O velho ficou decepcionado.
     ­  Se você sair prometendo  o que ainda não tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
     O rapaz então contou que tinha prometido um décimo à cigana.
     ­ Os  ciganos são espertos ­ suspirou o velho. ­ De qualquer maneira  é
bom você aprender que tudo na vida tem um preço. É isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
     O velho devolveu o livro ao rapaz.
     ­ Amanhã, nesta mesma  hora, você me traz um décimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
     E sumiu numa das esquinas da praça.


     O rapaz tentou  ler o  livro,  mas  não  conseguiu concentrar-se  mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi até o
pipoqueiro, comprou  um saco  de pipocas, enquanto  pensava se devia  ou não
contar a ele o que o velho dissera. "Às vezes é melhor deixar as coisas como
estão", pensou  o  rapaz, e ficou  quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar três dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.


     Ele podia  evitar este sofrimento  ao  pipoqueiro.  Começou a andar sem
rumo pela cidade, e  foi até o porto. Havia um pequeno prédio,  e no  prédio
havia uma janelinha onde  as pessoas compravam passagens. O Egito  estava na
África.
     ­ Quer alguma coisa? ­ perguntou o sujeito no guichê.
     ­ Talvez amanhã ­  disse o rapaz se afastando. Se  vendesse  apenas uma
ovelha podia  chegar  até o  outro lado  do  estreito.  Era uma idéia  que o
apavorava.
     ­  Mais  um  sonhador  ­  disse o sujeito do guichê  ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. ­ Não tem dinheiro para viajar.

     Quando estava no guichê,  o  rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto  delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grávidas,
proteger os animais  contra  os lobos.  Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia.  Conhecia  o  preço  justo de comprar e  vender cada  um dos seus
animais.
     Resolveu voltar até o estábulo de seu amigo pelo caminho  mais longo. A
cidade também tinha um  castelo,  e ele resolveu subir  a rampa  de  pedra e
sentar-se numa de suas muradas.  Lá de cima ele  podia ver  a África. Alguém
certa vez havia lhe  explicado que por ali chegaram os mouros,  que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros.  Eles
é que tinham trazido os ciganos.
     De lá  podia ver também quase  toda  a  cidade, inclusive a praça  onde
havia conversado com o velho.
     "Maldita  hora em  que encontrei este velho",  pensou  ele.  Tinha  ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o  velho
davam qualquer importância  para  o  fato de  que ele  era  um pastor.  Eram
pessoas solitárias, que já não acreditavam mais na vida, e não entendiam que
os pastores terminam apegados às suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma  delas: sabia qual mancava, qual iria  dar  cria daqui  a dois meses,  e
quais eram as  mais preguiçosas.  Sabia  também  como  tosquiá-las,  e  como
matá-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
     Um vento começou a soprar.  Ele  conhecia  aquele vento:  as pessoas  o
chamavam  de  Levante,  porque com  este vento chegaram  também as hordas de
infiéis. Até  conhecer Tarifa, nunca havia pensado  que a África estava  tão
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
     O  Levante  começou a  soprar mais forte.  "Estou  entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado  e  alguma coisa  que gostaria de ter. Havia também a filha do
comerciante, mas  ela não era  tão  importante como as  ovelhas, porque  não
dependia dele. Talvez  sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se não
aparecesse  daqui  a dois dias, a menina não iria notar: para  ela todos  os
dias eram iguais, e quando todos  os dias ficam iguais,  é porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre  que o
sol cruza o céu.
     "Eu larguei meu  pai, minha  mãe, e o castelo  da minha cidade. Eles se
acostumaram  e  eu me acostumei.  As ovelhas também vão  se acostumar  com a
minha falta", pensou o rapaz.
     De lá de cima ele olhou  a praça. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um  jovem casal sentou-se no banco onde ele havia  conversado com o
velho, e deram um longo beijo.


     "O pipoqueiro", disse para si  mesmo, sem completar  a frase. Porque  o
Levante havia começado a soprar com mais força, e ele ficou sentindo o vento
no  rosto. Ele  trazia os mouros,  é  verdade, mas também trazia o cheiro do
deserto  e das mulheres cobertas com véu.  Trazia  o  suor e  os  sonhos dos
homens que um dia  haviam partido em  busca  do  desconhecido, de  ouro,  de
aventuras ­ e de pirâmides. O rapaz começou a invejar a liberdade do  vento,
e  percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele próprio. As
ovelhas,  a  filha  do comerciante,  os campos de  Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.







     No dia seguinte  o rapaz  encontrou-se com  o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
     ­  Estou surpreso ­  disse  ele.  ­ Meu amigo  comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira  havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
     ­ É sempre assim ­ disse o velho. ­ Chamamos de Princípio Favorável. Se
você for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza irá ganhar.
Sorte de principiante.
     ­ E por que?
     ­ Porque a vida quer que você viva sua Lenda Pessoal.
     Depois começou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O  rapaz  explicou que isto não  tinha importância, porque  ela era  a  mais
inteligente, e produzia bastante lã.
     ­ Onde está o tesouro? ­ perguntou.
     ­ O tesouro está no Egito, perto das Pirâmides.
     O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas não tinha
cobrado nada.
     ­ Para chegar até ele, você terá que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. É só ler o que ele escreveu para
você.
     Antes  que  o  rapaz dissesse  alguma  coisa,  uma  mariposa  começou a
esvoaçar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avô; quando ele era criança,
seu avô  lhe dissera  que  as  mariposas eram  sinal de boa  sorte. Como  os
grilos, as esperanças, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
     ­  Isto ­ disse o velho,  que  era  capaz  de ler seus  pensamentos.  ­
Exatamente como seu avô lhe ensinou. Estes são os sinais.
     Depois o velho  abriu o  manto que  lhe  cobria o peito. O rapaz  ficou
impressionado com o que viu, e  lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O  velho  tinha  um  peitoral  de ouro  maciço, coberto de  pedras
preciosas.
     Era realmente um rei.  Devia  estar disfarçado  assim  para  fugir  dos
salteadores.
     ­ Tome ­ disse o velho, tirando  uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral  de ouro.  ­ Chamam-se Urim e  Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "não". Quando você não conseguir
enxergar os sinais, elas servem. Faça sempre uma pergunta objetiva.
     "Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisões.  O tesouro está
nas Pirâmides e isto  você já  sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decisão".
     O rapaz  guardou as pedras no  alforje . Daqui por diante, tomaria suas
próprias decisões.
     ­ Não  se  esqueça  de que  tudo  é  uma coisa  só. Não  se esqueça  da
linguagem dos  sinais.  E, sobretudo, não  se esqueça de ir até o fim de sua
Lenda Pessoal.
     "Antes, porém, gostaria de contar-lhe uma pequena história.
     "Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo  da Felicidade
com  o  mais sábio de  todos os homens.  O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,


     até chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. Lá vivia o Sábio
que o rapaz buscava.
     "Ao invés de encontrar um homem santo, porém, o nosso herói entrou numa
sala  e viu  uma atividade  imensa;  mercadores  entravam e  saíam,  pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena  orquestra tocava  melodias  suaves, e
havia uma  farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela região do mundo.
O Sábio conversava  com todos,  e o rapaz teve que esperar  duas  horas  até
chegar sua vez de ser atendido.
     "O Sábio ouviu atentamente o motivo  da visita do rapaz,  mas disse-lhe
que naquele momento não tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que  o rapaz desse um passeio por  seu palácio,  e  voltasse daqui a
duas horas.
     "­ Entretanto, quero lhe pedir um favor ­ completou o Sábio, entregando
ao rapaz uma  colher de chá, onde pingou duas gotas de óleo. ­ Enquanto você
estiver  caminhando,  carregue  esta  colher  sem  deixar  que o  óleo  seja
derramado.
     "O rapaz começou a subir  e  descer as escadarias  do palácio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou à presença
do Sábio.
     "­ Então ­  perguntou  o  Sábio ­ você  viu as tapeçarias da Pérsia que
estão na minha sala de jantar? Viu  o jardim  que o  Mestre dos  Jardineiros
demorou dez  anos  para  criar?  Reparou  nos  belos  pergaminhos  de  minha
biblioteca?
     "O rapaz, envergonhado, confessou  que não havia visto nada. Sua  única
preocupação  era  não  derramar  as  gotas  de óleo  que o Sábio  lhe  havia
confiado.
     "­  Pois  então volte  e conheça as maravilhas  do  meu mundo ­ disse o
Sábio. ­ Você não pode confiar num homem se não conhece sua casa.
     "Já mais  tranqüilo,  o  rapaz  pegou a colher e  voltou a passear pelo
palácio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o  requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
à presença do Sábio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
     "­ Mas onde estão as duas gotas de óleo que  lhe confiei? ­ perguntou o
Sábio.
     "Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
     "­  Pois este é o único conselho que  eu tenho  para lhe dar ­ disse  o
mais Sábio dos  Sábios. ­  O  segredo da  felicidade  está em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de óleo na colher".
     O rapaz ficou em silêncio.  Havia compreendido a história do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
     O  velho olhou  para o rapaz, e com  as duas mãos espalmadas fez alguns
gestos  estranhos  em sua  cabeça. Depois,  pegou  os animais e  seguiu  seu
caminho.





     No alto da  pequena  cidade de Tarifa existe um  velho forte construído
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma praça,  um
pipoqueiro, e um pedaço da África. Melquisedec, o Rei de Salém, sentou-se na
murada  do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo


     do novo dono,  e excitadas com tantas mudanças. Tudo que  elas  queriam
era apenas comida e água.
     Melquisedec  olhou  o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria  a ver  o rapaz, da  mesma  maneira como jamais  tornou  a ver
Abraão, depois de lhe ter cobrado o dízimo. Entretanto, esta era a sua obra.
     Os  deuses não  devem  ter  desejos,  porque  os deuses  não têm  Lenda
Pessoal.  Entretanto,  o Rei de Salém torceu intimamente  para  que  o rapaz
tivesse êxito.
     "Pena que ele  vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim,  quando  falasse  a  meu  respeito,  diria  que  sou
Melquisedec, o Rei de Salém."
     Depois  olhou para o  céu  meio arrependido:  "sei  que  é  vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei às vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".




     "Como é estranha a África", pensou o rapaz.
     Estava sentado numa espécie de  bar igual a outros bares que ele  havia
encontrado  nas ruelas  estreitas  da  cidade.  Algumas  pessoas fumavam  um
cachimbo  gigante, que era passado de  boca em boca. Em poucas  horas  havia
visto homens  de  mãos dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e começavam a cantar ­ enquanto todos à sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabeça no solo.
     "Coisa de infiéis", disse para si mesmo. Quando  criança, via sempre na
igreja  da sua  aldeia uma imagem de  São Santiago Matamouros em  seu cavalo
branco, com  a espada desembainhada, e figuras como aquelas  debaixo de seus
pés. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente  só.  Os infiéis  tinham um olhar
sinistro.
     Além  disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um único detalhe, que podia  afastá-lo  do  seu  tesouro  por  muito  tempo:
naquele país todos falavam árabe.
     O dono do  bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um chá amargo. O rapaz preferia beber vinho.
     Mas não devia  preocupar-se com isto agora. Tinha que  pensar apenas no
seu  tesouro,  e  a maneira de  consegui-lo. A venda das ovelhas  lhe  havia
deixado com  bastante dinheiro  no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
mágico: com ele ninguém jamais está sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das Pirâmides. Um  velho, com todo aquele ouro no peito,
não precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
     O velho  lhe  havia falado  de  sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim,  sabia do que  ele estava  falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia,  havia se acostumado a ler na
terra  e nos céus as condições do caminho  que  devia seguir. Aprendera  que
certo pássaro  indicava uma cobra  por perto,  e que determinado arbusto era
sinal de água daqui  a  alguns quilômetros.  As ovelhas  lhe haviam ensinado
isto.
     "Se  Deus  conduz  tão  bem  as  ovelhas,  também conduzirá  o  homem",
refletiu, e ficou mais tranqüilo. O chá parecia menos amargo.
     ­ Quem é você? ­ ouviu uma voz em espanhol.
     O rapaz ficou imensamente aliviado.  Estava pensando em sinais e alguém
tinha aparecido.
     ­ Como  você fala espanhol? ­ perguntou.  O recém-chegado era  um rapaz
vestido à maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava  que  devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
     ­ Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos há apenas duas  horas da
Espanha.
     ­ Sente-se e  peça alguma coisa por minha conta  ­ disse o rapaz.  ­  E
peça um vinho para mim. Detesto este chá.
     ­  Não há  vinho no país  ­  disse  o recém-chegado. ­ A  religião  não
permite.
     O  rapaz disse então  que precisava chegar  até  as Pirâmides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu  ficar calado. Senão era bem capaz do árabe
querer uma parte para levá-lo até  lá. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
     ­ Gostaria que me levasse até lá, se puder. Posso lhe pagar como guia.
     ­ Você tem idéia de como chegar até lá?


     O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a  conversa. Sentia-se incomodado  com a presença dele. Mas tinha encontrado
um guia, e não ia perder esta oportunidade.
     ­  Você  tem  que  atravessar  todo  o  deserto  de  Saara  ­  disse  o
recém-chegado. ­ E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se você tem
dinheiro suficiente.
     O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
     Tirou  seu dinheiro do bolso e mostrou ao  recém-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou  também. Os  dois trocaram algumas palavras em árabe. O
dono do bar parecia irritado.
     ­ Vamos embora ­ disse o recém-chegado.
     ­ Ele não quer que continuemos aqui.
     O rapaz ficou aliviado.  Levantou-se  para pagar a  conta, mas o dono o
agarrou e  começou  a falar  sem parar. O rapaz  era  forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi  seu  novo  amigo que empurrou o dono para o  lado  e
puxou o rapaz para fora.
     ­  Ele queria seu dinheiro  ­ disse. ­ Tânger não  é igual ao resto  da
África. Estamos num porto e os portos têm sempre muito ladrões.
     Ele podia confiar em seu  novo  amigo. Tinha  lhe ajudado numa situação
crítica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
     ­  Podemos chegar  amanhã nas  Pirâmides  ­ disse o  outro,  pegando  o
dinheiro. ­ Mas preciso comprar dois camelos.
     Saíram andando pelas ruas  estreitas  de  Tânger.  Em todo canto haviam
barracas de coisas  para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande praça,
onde  funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortaliças misturadas com  adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o  rapaz  não  tirava o olho de  seu  novo amigo.  Afinal  de
contas,  ele  estava com todo o seu dinheiro nas  mãos. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele não conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
     "Basta vigiá-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
     De repente, no  meio de toda aquela confusão, estava a mais bela espada
que  seus olhos  já haviam  visto. A bainha era  prateada, e o  cabo  negro,
cravejado  de pedras. O  rapaz prometeu a  si mesmo que, quando voltasse  do
Egito, ia comprar aquela espada.
     ­ Pergunte ao dono  da barraca quanto  custa  ­ disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distraído, olhando a espada.
     Seu  coração  ficou  pequeno,  como  se  o  peito  tivesse  subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia  o que ia encontrar.
Os  olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, até que
o rapaz tomou coragem e se virou.
     Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avelãs, as  alfaces junto às bandejas de cobre, os
homens de mãos  dadas pelas ruas, as  mulheres  de  véu, o cheiro  de comida
estranha,  e  em  nenhum lugar, mas em  nenhum lugar mesmo, o rosto  de  seu
companheiro.

     O rapaz ainda  quis  pensar que  haviam se perdido por  acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que  o  outro  voltasse.  Pouco  tempo depois  um
sujeito subiu numa  daquelas  torres e  começou a cantar;  todas as  pessoas
ajoelharam-se no chão,  bateram com  a  cabeça no  solo,  e cantaram também.
Depois, como um bando de formigas  trabalhadoras,  desfizeram  as barracas e
foram embora.


     O  sol começou a ir embora  também.  O rapaz olhou o  sol durante muito
tempo, até que  ele se escondeu atrás das casas brancas que davam a volta na
praça. Lembrou-se  que quando  aquele sol nascera  de manhã, ele  estava  em
outro continente,  era  um pastor,  tinha  sessenta  ovelhas,  e um encontro
marcado  com uma moça. De manhã ele sabia tudo  que iria acontecer  enquanto
andava pelos campos.
     Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num país diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a língua que
falavam.  Já não  era um pastor, e  não tinha mais nada  na  vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e começar tudo de novo.
     "Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" ­ pensou o  rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque às vezes as coisas mudam na vida no espaço
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
     Tinha  vergonha  de chorar. Jamais  havia chorado  na  frente  de  suas
próprias  ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e  ele estava longe da
pátria.
     O  rapaz chorou.  Chorou porque  Deus era  injusto,  e retribuía  desta
maneira às  pessoas que  acreditavam  em seus  próprios sonhos.  "Quando  eu
estava  com  as ovelhas eu era feliz,  e espalhava sempre felicidade à minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
     "Mas agora estou  triste  e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
não  vou confiar  nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram  tesouros escondidos, porque eu não encontrei o  meu.  E vou
sempre procurar  manter o  pouco que tenho, porque  sou pequeno demais  para
abraçar o mundo".

     Abriu  seu  alforje para  ver o  que  tinha  lá  dentro; talvez tivesse
sobrado  alguma  coisa  do  sanduíche que havia  comido  no  barco.  Mas  só
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
     Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensação de alívio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, saídas de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais  esperto",
pensou  o  rapaz, tirando as  pedras  do alforje para escondê-las dentro  do
bolso. Ali era um  porto, e esta  era a única verdade que  aquele  homem lhe
dissera; um porto está sempre cheio de ladrões.
     Agora entendia também  o  desespero  do  dono do  bar: estava  tentando
dizer- lhe para não confiar naquele homem. "Sou como  todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e não da maneira
que as coisas acontecem".
     Ficou olhando  as  pedras.  Tocou  com  cuidado cada  uma,  sentindo  a
temperatura e a superfície lisa. Elas  eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranqüilidade. Elas lhe lembravam do velho.
     "Quando você quer uma coisa,  todo o  Universo conspira para que  possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
     Queria entender como aquilo podia ser  verdade.  Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que  tinha encontrado  um rei ­ um rei que sabia a
sua história, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experiência sexual.
     "As pedras  servem para adivinhação.  Chamam-se Urim e  Tumim". O rapaz
colocou  de novo as pedras dentro do  saco e resolveu experimentar. O  velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras só  serviam para
quem sabe o que quer.


     O rapaz então perguntou se a bênção do velho continuava ainda com ele.
     Tirou uma das pedras. Era "sim".
     "Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
     Enfiou a  mão no alforje e  ia  pegando  uma  das  pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no  tecido. O  rapaz nunca havia  percebido  que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e colocá-los
de novo dentro do saco. Ao  vê-las no chão, porém, uma outra frase surgiu em
sua cabeça.
     "Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
     Um sinal.  O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas  pedras no
chão e as recolocou no  alforje.  Não pensava  costurar o buraco ­ as pedras
poderiam  escapar  por ali  sempre que desejassem. Ele havia  entendido  que
certas coisas  a  gente  não devia  perguntar ­  para  não  fugir do próprio
destino. "Prometi tomar minhas próprias decisões", disse para si mesmo.
     Mas  as pedras tinham dito que o velho, continuava com  ele, e isto lhe
deu  mais  confiança.  Olhou de novo para o  mercado  vazio, e não  sentiu o
desespero de antes. Não era um mundo estranho; era um mundo novo.
     Pois, afinal de  contas,  tudo  que ele  queria  era  exatamente  isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais  chegasse  até as Pirâmides, ele
já tinha  ido muito mais longe do que  qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles  soubessem que  a apenas  duas horas  de  barco  existem tantas  coisas
diferentes".
     O  mundo novo aparecia  na sua frente sob a forma  de um mercado vazio,
mas ele já  vira aquele mercado cheio de vida,  e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada ­ foi um preço caro  contemplá-la um pouco,  mas também
nunca  tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre vítima de um ladrão, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
     "Sou um aventureiro  em  busca de  um tesouro", pensou,  antes  de cair
exausto no sono.


     Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela praça estava prestes a recomeçar de novo.
     Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao invés de sentir-se triste, ficou feliz. Não  tinha mais que seguir
em busca de água e comida; podia seguir em busca de um tesouro. Não tinha um
centavo no bolso, mas tinha fé na vida. Havia  escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
     Começou a andar  sem pressa  pela praça. Os mercadores colocaram em  pé
suas barracas; ajudou um doceiro a  montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto  daquele  doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
começar um bom  dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho  e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro não
está  fazendo doces porque quer viajar,  ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o  rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho ­ saber se uma pessoa está
próxima ou distante de sua  Lenda Pessoal. Só em olhar para ela. "É fácil, e
eu nunca havia percebido isto."
     Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro  lhe estendeu o primeiro
doce que  havia  feito. O rapaz comeu  satisfeito, agradeceu,  e seguiu  seu
caminho. Quando já


     havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando árabe e a outra, espanhol.
     E tinham se entendido perfeitamente.
     "Existe uma linguagem que está além das palavras", pensou o  rapaz. "Eu
já experimentei  isto com  as ovelhas, e agora  estou  experimentando com os
homens."
     Estava  aprendendo  várias  coisas  novas.  Coisas  que  ele  já  havia
experimentado, e que no  entanto  eram novas, porque tinham passado  por ele
que  tivesse percebido. E  não tinha percebido, porque estava acostumado com
elas.  "Se  eu  aprender a  decifrar esta  linguagem  sem  palavras,  eu vou
conseguir decifrar o mundo".
     "Tudo é uma coisa só", falava o velho.
     Resolveu  andar  sem pressa  e  sem  ansiedade  pelas pequenas  ruas de
Tânger: só desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia  muita
paciência, mas esta é a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando  naquele mundo  estranho as mesmas lições  que
suas ovelhas lhe ensinaram.
     "Tudo é uma coisa só", havia falado o velho.




     O  Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angústia que
experimentava  todas as manhãs. Estava há quase  trinta anos  naquele  mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer  coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e  comprar  cristais. Houve um tempo em que  muita gente conhecia
sua loja: mercadores árabes, geólogos franceses e ingleses, soldados alemães
sempre com dinheiro no  bolso. Naquela época era uma grande  aventura vender
cristais, e ele pensava como ia  ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
     Depois  o tempo foi passando, e a cidade também. Ceuta cresceu mais que
Tânger, e o comércio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas  na ladeira. Ninguém ia subir  uma ladeira por  causa  de umas
poucas lojas.
     Mas o Mercador de Cristais não tinha escolha.  Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo peças de cristal, e  agora era tarde demais
para mudar de rumo.
     Durante a manhã inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo há anos, e já sabia o horário de cada pessoa. Quando  faltavam alguns
minutos para o almoço, um  rapaz estrangeiro parou diante  de  sua  vitrine.
Estava vestido  normalmente,  mas os  olhos  experimentados  do  Mercador de
Cristais concluíram que ele não tinha dinheiro. Mesmo  assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, até que o rapaz fosse embora.






     Havia um  cartaz na porta dizendo  que ali se falavam várias línguas. O
rapaz viu um homem aparecer atrás do balcão.
     ­ Posso limpar estes vasos se você quiser ­ disse o rapaz. ­ Assim como
eles estão, nenhum comprador vai querer comprar.
     O homem olhou sem dizer nada
     ­ Em troca, você me paga um prato de comida.
     O homem continuou em silêncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decisão. Dentro de seu alforje havia o casaco ­ não ia precisar mais dele no
deserto.  Tirou  o casaco e  começou a limpar os  vasos.  Durante  meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
     Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
     ­ Vamos comer ­ disse o Mercador de Cristais.
     Colocou uma tabuleta na porta, e  foram até um minúsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na única mesa  existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
     ­ Não era preciso limpar nada ­ disse. ­ A  lei do Alcorão obriga a dar
de comer a quem tem fome.
     ­ Então por que me deixou fazer isto? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Porque os cristais  estavam sujos. E  tanto você como eu precisávamos
limpar as cabeças dos maus pensamentos.
     Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
     ­  Queria que  você trabalhasse na  minha  loja  . Hoje  entraram  dois
fregueses enquanto você limpava os vasos, e isto é um bom sinal.
     "As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas  não percebem
o que estão dizendo. Da mesma maneira que eu não percebia que há muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
     ­ Quer trabalhar para mim? ­ insistiu o Mercador.
     ­ Posso trabalhar o resto do dia ­ respondeu o rapaz. ­ Limparei até de
madrugada  todos os cristais  da  loja. Em  troca, preciso  de dinheiro para
estar amanhã no Egito.
     O velho riu de novo.
     ­ Mesmo que você  limpasse meus cristais  durante um ano inteiro, mesmo
que você ganhasse uma boa comissão de vendas  em cada um deles, ainda ia ter
que  arranjar  dinheiro  emprestado para ir  ao Egito.  Existem  milhares de
quilômetros de deserto entre Tânger e as Pirâmides.

     Houve  um momento de  silêncio tão  grande,  que a  cidade  parecia ter
adormecido. Já não haviam mais  os bazares, as discussões dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas  com seus punhos
cravejados. Já não havia mais a esperança e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais,  o tesouro  e  as  pirâmides.  Era como se todo o mundo  estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silêncio. Não  havia. nem  dor, nem
sofrimento,  nem decepção: apenas um olhar vazio através da pequena porta do
bar,  e  uma  vontade  imensa  de morrer,  de que tudo  acabasse para sempre
naquele minuto.



     O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manhã houvesse subitamente desaparecido.
     ­ Posso lhe dar  dinheiro para voltar  à sua terra, meu filho ­ disse o
Mercador de Cristais.
     O rapaz continuou em silêncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
     ­ Vou trabalhar com o senhor ­ disse.
     E depois de outro silêncio demorado, concluiu:
     ­ Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.









     Há quase um mês o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e não  era  exatamente o  tipo de  emprego que lhe  fazia feliz.  O Mercador
passava  o  dia  inteiro  resmungando  atrás do balcão, pedindo que  tomasse
cuidado com as peças, que não deixasse quebrar nada.
     Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
não era injusto; o rapaz recebia uma boa comissão em cada peça vendida, e já
havia  conseguido  juntar algum dinheiro.  Naquela manhã  havia feito certos
cálculos: se continuasse  a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
     ­  Gostaria  de fazer uma estante para os cristais  ­  disse o rapaz ao
Mercador.  ­  Ela pode  ser colocada do  lado  de  fora, e  atrair quem está
passando lá embaixo da ladeira.
     ­  Nunca fiz uma estante antes  ­ respondeu o  Mercador.  ­ As  pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
     ­ Quando  eu  andava pelo  campo com  as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma  cobra.  Mas isto  faz  parte  da  vida das  ovelhas e  dos
pastores.
     O  Mercador atendeu  um freguês  que desejava três  vasos  de  cristal.
Estava vendendo  melhor do  que nunca,  como  se o  mundo tivesse voltado no
tempo, para a época em que a rua era uma das principais atrações de Tânger.
     ­ O movimento já melhorou bastante ­ disse  ao  rapaz, quando o freguês
saiu.  ­  O dinheiro  permite que  eu viva melhor, e  lhe devolverá  as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
     ­ Porque  temos que seguir os sinais ­ falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia  encontrado um
rei.
     "Chama-se Princípio Favorável,  sorte  de  principiante.  Porque a vida
quer que você viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
     O  Mercador,  entretanto, estava entendendo o  que  o rapaz  falava.  A
simples presença dele na loja era  um  sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele não estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o  rapaz estivesse ganhando mais do que  devia; como ele
sempre havia achado  que  as vendas não  mudavam  mais, tinha oferecido  uma
comissão alta,  e sua intuição dizia que em breve o garoto estaria de  volta
às suas ovelhas.
     ­  Por que você queria conhecer as Pirâmides? ­ perguntou, para mudar o
assunto da estante.
     ­ Porque sempre me falaram nelas ­ disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o  tesouro era uma lembrança sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
     ­ Eu não conheço ninguém aqui que queira atravessar  o deserto só  para
conhecer as Pirâmides ­ disse o  Mercador.  ­ São apenas um monte de pedras.
Você pode construir uma no seu quintal.
     ­ Você nunca teve  sonhos de viajar ­ disse o rapaz, atendendo mais  um
freguês que entrava na loja.





     Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
     ­  Não  gosto de mudanças ­ disse o  Mercador. ­ Nem eu nem  você somos
como Hassan, o  rico  comerciante. Se ele erra numa compra, isto não o afeta
muito. Mas nós dois temos sempre que conviver com nossos erros.
     "É verdade", pensou o rapaz.
     ­ Para que você quer a estante? ­ disse o Mercador.
     ­  Quero voltar mais rápido para minhas ovelhas.  Temos  que aproveitar
quando a sorte  está do  nosso lado, e fazer  tudo  para ajudá-la  da  mesma
maneira que ela  está nos ajudando.  Chama-se Princípio Favorável. Ou "sorte
de principiante".
     O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
     ­  O Profeta nos deu o Alcorão,  e  nos deixou apenas  cinco obrigações
para serem seguidas em nossa existência. A mais  importante é a seguinte: só
existe um Deus. As outras são: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mês
de Ramadã, fazer caridade com os pobres.
     Parou  de falar. Seus olhos ficaram cheios de água ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso,  e mesmo com toda a sua impaciência, procurava viver
sua vida de acordo com a lei muçulmana.
     ­ E qual a quinta obrigação? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Há dois dias  atrás você disse que eu nunca  tive  sonhos de viajar ­
respondeu o Mercador.  ­ A quinta obrigação de todo muçulmano é  uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, à cidade sagrada de Meca.
     "Meca é muito mais longe que as Pirâmides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que  tinha para  começar  esta loja.  Pensava em ser
rico  algum  dia, para ir  a Meca. Passei a  ganhar dinheiro, mas não  podia
deixar  ninguém  cuidando  dos  cristais,  porque  os  cristais  são  coisas
delicadas.  Ao mesmo tempo, via  passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na direção de  Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um séquito de criados e de camelos, mas a maior  parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
     "Todas iam  e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
símbolos da peregrinação.  Uma delas, um sapateiro que vivia de  remendar as
botas alheias,  me disse que havia caminhado quase  um ano pelo deserto, mas
que  ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteirões
em Tânger para comprar couro".
     ­ Por que não vai a Meca agora? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Porque Meca é o que  me mantém  vivo.  É o  que me faz agüentar todos
estes dias iguais, estes vasos  calados nas prateleiras, o almoço e o jantar
naquele restaurante horrível. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois não
ter mais motivos para continuar vivo.
     "Você  sonha com  ovelhas e com pirâmides. É  diferente de mim,  porque
deseja  realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com  Meca. Já  imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na praça onde está a
Pedra Sagrada, as sete voltas que  devo dar em torno dela antes de  tocá-la.
Já  imaginei quais  pessoas estarão  do  meu lado,  na  minha frente,  e  as
conversas e orações que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decepção, então prefiro apenas sonhar".
     Neste dia, o Mercador deu permissão  ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.








     Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses à loja
dos cristais. O rapaz  calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar à Espanha e comprar sessenta  ovelhas,  e  mais  sessenta ovelhas. Em
menos de um ano  ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
árabes,  porque já conseguia  falar aquela  língua  estranha. Depois daquela
manhã no mercado, ele  não  havia mais utilizado o Urim e o  Tumim, porque o
Egito  passou a ser apenas um sonho tão distante  para ele como era a cidade
de Meca para o  Mercador. Entretanto, o  rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia  em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
     "Lembre-se de saber  sempre o que  quer", havia falado o velho  rei.  O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar àquela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar  o número de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
     Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes,  como
o  comércio  de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem  no alto  da ladeira,  reclamando que  era impossível encontrar  um
lugar decente para beber alguma  coisa depois  de toda a subida. O rapaz  já
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
     ­ Vamos vender chá para as pessoas que sobem a ladeira ­ disse ele.
     ­ Muitas pessoas vendem chá por aqui ­ respondeu o Mercador.
     ­  Podemos vender chá em vasos  de cristal. Assim as pessoas vão gostar
do chá, e vão querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz  os homens
é a beleza.
     O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo.  Não respondeu nada.
Mas naquela  tarde, depois de  fazer suas orações e fechar a loja, sentou-se
na calçada com ele e convidou-o a fumar narguilé  ­ aquele estranho cachimbo
que os árabes usavam.
     ­ O que você está procurando? ­ perguntou o velho Mercador de Cristais.
     ­ Já  lhe  disse.  Preciso comprar de volta as ovelhas.  E para isto  é
necessário dinheiro.
     O  velho colocou  algumas  brasas  novas no  narguilé,  e deu uma longa
tragada.
     ­ Há trinta anos  tenho  esta loja. Conheço o bom  e  o mau cristal,  e
conheço  todos os detalhes  do seu funcionamento.  Estou  acostumado com seu
tamanho  e seu movimento.  Se  você  colocar  chá  em cristais, a  loja  irá
crescer. Então eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
     ­ E isto não é bom?
     ­ Estou acostumado com minha  vida. Antes de você, eu pensava que havia
perdido  tanto tempo  no  mesmo lugar,  enquanto meus amigos todos  mudavam,
quebravam,  ou progrediam Isto me deixava com  uma imensa tristeza. Agora eu
sei que não era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. Não  quero mudar,  porque  não sei  como mudar.  Já estou muito
acostumado comigo mesmo.
     O rapaz não sabia o que dizer. O velho então continuou:
     ­ Você foi uma bênção para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bênção que não é aceita, transforma-se numa  maldição. Eu não  quero mais da
vida.  E você está  me forçando  a  ver  riquezas e  horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conheço, e  que conheço minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me  sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
não quero.


     "Ainda bem que eu não disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
     Continuaram fumando  o  narguilé  por algum tempo,  enquanto  o  sol se
escondia. Estavam conversando em árabe, e o rapaz estava  satisfeito consigo
mesmo, porque falava árabe. Houve uma época em  que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas não sabiam ensinar árabe.
     "Devem ter outras  coisas no mundo  que as ovelhas não sabem  ensinar",
pensou  o  rapaz, enquanto  olhava o Mercador  em silêncio. "Porque elas  só
estão em busca de água e comida.
     "Acho que não são elas que ensinam: eu é que aprendo".
     ­ Maktub ­ disse finalmente o mercador.
     ­ O que é isto?
     ­ Você precisaria ter nascido árabe para compreender ­ respondeu ele. ­
Mas a tradução seria algo como "está escrito".
     E  enquanto  apagava as brasas  do narguilé,  disse  que o  rapaz podia
começar a vender chá nos vasos. Às vezes, é impossível deter o rio da vida.


     Os homens subiam a ladeira e ficavam  cansados. Então, lá no seu  topo,
havia uma loja  de belos  cristais  com  chá de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o chá, que era servido em lindos vasos de cristal.
     "Jamais minha  mulher pensou nisto", lembrava  um,  e  comprava  alguns
cristais,  porque ia  ter  visitas naquela  noite: seus convidados  ficariam
impressionados com a riqueza das taças. Outro  homem passou a garantir que o
chá  era  sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o  aroma. Um  terceiro  disse  ainda  que era tradição no
Oriente utilizar  vasos  de cristal junto com chá, por causa de seus poderes
mágicos.
     Em  pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas  pessoas  passaram  a
subir até o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo  de
novo num comércio tão antigo. Outras  lojas de chá em copos de cristal foram
abertas, mas  não ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam  sempre
vazias.
     Em  pouco tempo, o  Mercador teve que contratar  mais dois  empregados.
Passou a  importar, junto com os  cristais, quantidades  enormes de chá, que
eram  diariamente  consumidas  pelos homens e mulheres  com  sede de  coisas
novas.
     E assim transcorreram seis meses.






     O  rapaz acordou antes do  sol nascer. Tinham-se passado  onze meses  e
nove  dias  desde  que  ele havia  pisado pela  primeira vez  no  continente
africano.
     Vestiu sua  roupa  árabe, de linho branco, comprada especialmente  para
aquele  dia.  Colocou o lenço na cabeça, fixo por  um anel feito de  pele de
camelo. Calçou as sandálias novas, e desceu sem fazer qualquer ruído.
     A cidade ainda dormia. Ele fez  um  sanduíche de  gergelim, e bebeu chá
quente  no vaso de cristal. Depois  sentou-se  na soleira da porta,  fumando
sozinho o narguilé.
     Fumou em silêncio, sem pensar em nada, escutando  apenas o ruído sempre
constante  do  vento  que  soprava  trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de  f'umar, enfiou  a mão  num dos bolsos  do traje, e  ficou  alguns
instantes contemplando o que havia retirado lá de dentro.
     Havia um  grande  maço de dinheiro. O suficiente para comprar  cento  e
vinte  ovelhas, uma  passagem de  volta, e uma licença de comércio entre seu
país e o país onde estava.
     Esperou pacientemente que o velho acordasse e  abrisse  a loja. Os dois
então foram juntos tomar mais chá.
     ­ Vou embora hoje ­ disse o rapaz. ­ Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. Você tem dinheiro para ir à Meca.
     O velho não disse nada.
     ­ Peço sua bênção ­ insistiu o rapaz. ­ Você me ajudou.
     O  velho continuou  a  preparar o chá em silêncio.  Depois de  um certo
tempo, porém, virou-se para o rapaz.
     ­ Tenho orgulho de você ­ disse. ­ Você  trouxe alma para a  minha loja
de cristais.  Mas sabe que  eu não vou  à Meca. Como sabe que não  voltará a
comprar ovelhas.
     ­ Quem lhe disse isto? ­ perguntou o rapaz, assustado.
     ­ Maktub ­ disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
     E o abençoou.


     O rapaz  foi até seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram  três sacolas
cheias. Quando já estava saindo, notou  que,  num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava  todo amassado, e ele quase nem  se lembrava
mais dele. Lá dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando  em dar de presente para um rapaz na  rua, as duas pedras
rolaram pelo chão. O Urim e o Tumim.
     O rapaz  então se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber há
quanto tempo não pensava  mais nisto.  Durante  um ano havia  trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para não voltar de cabeça baixa
para a Espanha.
     "Nunca  desista  dos seus sonhos", havia falado o  velho  rei. "Siga os
sinais".
     O  rapaz pegou o  Urim e  o  Tumim no  chão, e  teve  novamente  aquela
estranha sensação de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
     "Vou  voltar exatamente  a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E  as
ovelhas não me ensinaram a falar árabe".


     As   ovelhas,   entretanto,  tinham   ensinado  uma  coisa  muito  mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com  amor e com vontade, em
busca  de algo que se  desejava ou em que se  acreditava.  Tânger já não era
mais  uma  cidade  estranha, e ele  sentiu que  da  mesma maneira  que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
     "Quando você deseja  uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realizá-la", havia falado o velho rei.
     Mas o velho rei não falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus  sonhos mas não desejam  realizá-los.  O velho rei  não
havia falado que as Pirâmides eram apenas  um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que,  quando se tem  dinheiro  para comprar um rebanho  maior do  que o  que
possuía, deve-se comprar este rebanho.
     O  rapaz pegou o  alforje  e  juntou com seus outros  sacos.  Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses  andavam pela  loja, tomando  chá em vasos de cristal. Era um  bom
movimento para  aquela  hora  da manhã.  Do  lugar  onde estava,  notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito  o cabelo do velho rei.
Lembrou-se  do  sorriso do  doceiro, no primeira dia  em  Tânger, quando não
tinha para onde ir  nem o  que comer; também aquele sorriso lembrava o velho
rei.
     "Como se ele tivesse passado por aqui e  deixado uma marca", pensou. "E
cada  pessoa  não tivesse já conhecido  este rei  em algum  momento de  suas
existências. Afinal de  contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".

     Saiu sem se despedir do Mercador de  Cristais. Não queria chorar porque
as  pessoas podiam ver. Mas  ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido.  Estava  mais confiante  em si  e  tinha
vontade de conquistar o mundo.
     "Mas  estou indo para os campos que  já conheço,  conduzir de  novo  as
ovelhas". E não estava mais contente com sua decisão.  Tinha  trabalhado  um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua importância. Talvez porque não fosse seu sonho.
     "Quem sabe é melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir à Meca, e
viver  da  vontade de conhecê-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
mãos, e estas pedras lhe  traziam a força e a vontade  do velho rei. Por uma
coincidência  ­ ou  um  sinal, pensou o rapaz ­ ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. Não havia mais o  ladrão,  e o dono lhe  trouxe uma
xícara de chá.
     "Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca  mais me  esquecerei  de como elas  são. Mas talvez não
tenha outra  oportunidade de chegar até as Pirâmides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha história.  Era um rei  de verdade, um rei
sábio".
     Estava apenas a  duas  horas de  barco das planícies de Andaluzia,  mas
havia um  deserto  inteiro  entre ele as  Pirâmides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situação:  na verdade, ele  estava duas horas
mais  perto do seu  tesouro.  Mesmo  que,  para caminhar  estas duas  horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
     "Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu já conheço as ovelhas;
não dão muito trabalho, e podem ser  amadas. Não sei  se o deserto  pode ser
amado,  mas  é o deserto  que esconde  o meu tesouro.  Se  eu não  conseguir
encontrá-lo, poderei sempre voltar


     para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que não?"
     Sentiu uma alegria  imensa naquele momento.  Sempre podia  voltar a ser
pastor de  ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. Não acontecia com qualquer pessoa.
     Estava  contente  quando  saiu do bar. Havia se  lembrado  que  um  dos
fornecedores  do Mercador trazia  os cristais em  caravanas  que  cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mãos; por causa daquelas  duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
     "Sempre estou  perto dos que vivem a  Lenda Pessoal",  dissera  o velho
rei.
     Não custava  nada ir até o armazém, saber se as Pirâmides eram  de fato
muito longe.







     O Inglês estava sentado numa construção  cheirando a animais,  suor,  e
poeira.  Não podia chamar  aquilo de armazém;  era apenas um curral. "Toda a
minha  vida  para ter  que passar por  um lugar  como este", pensou enquanto
folheava distraído uma revista de química. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
     Mas  era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais.  Toda a
sua vida, todos os  seus estudos foram  em  busca  da linguagem única  que o
Universo  falava. Primeiro  havia se  interessado por  Esperanto, depois por
religiões,  e  finalmente  por Alquimia.  Sabia  falar  Esperanto,  entendia
perfeitamente as diversas  religiões, mas ainda não era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar  coisas  importantes,  é  verdade.  Mas  suas  pesquisas
chegaram a  um ponto onde não conseguia progredir mais. Tinha tentado em vão
entrar em  contato  com  algum alquimista. Mas os alquimistas  eram  pessoas
estranhas, que  só pensavam neles mesmos, e  quase sempre  recusavam  ajuda.
Quem sabe, não haviam descoberto o segredo da Grande Obra ­ chamada de Pedra
Filosofal ­ e por isso se fechavam no silêncio.
     Já  havia  gasto parte  da  fortuna que seu pai  lhe  deixara, buscando
inutilmente a Pedra Filosofal.  Tinha freqüentado as melhores bibliotecas do
mundo, e  comprado  os livros mais importantes e mais raros sobre  alquimia.
Num  deles  descobriu que há muitos  anos atrás, um famoso alquimista  árabe
havia  visitado a  Europa. Diziam  que ele tinha mais de duzentos anos,  que
havia descoberto a Pedra  Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O Inglês ficou
impressionado com a  história. Mas tudo não teria passado de mais uma lenda,
se um amigo  seu ­ voltando de  uma expedição arqueológica  no deserto ­ não
lhe tivesse contado sobre um árabe que tinha poderes excepcionais.
     ­ Mora  no oásis de Al-Fayoum ­ disse seu  amigo. ­ E as pessoas contam
que tem duzentos anos, e que é capaz de transformar qualquer metal em ouro.
     O  Inglês não coube  em  si de tanta excitação.  Imediatamente cancelou
todos os seus compromissos,  juntou  os  livros  mais importantes,  e  agora
estava  ali,  naquele armazém parecido com um  curral, enquanto lá fora  uma
imensa caravana se preparava  para cruzar o  Saara.  A caravana  passava por
Al-Fayoum.
     "Tenho  que  conhecer  este maldito Alquimista", pensou o  Inglês.  E o
cheiro dos animais tornou-se um pouco mais tolerável.




     Um  jovem árabe,  também carregado de  malas, entrou no  lugar  onde  o
Inglês estava e o cumprimentou.
     ­ Aonde você vai? ­ perguntou o jovem árabe.
     ­ Para o deserto ­ respondeu o Inglês, e voltou para a sua leitura. Não
queria conversar agora. Precisava recordar  tudo que havia  aprendido em dez
anos, pois o Alquimista deveria submetê-lo a alguma espécie de prova.
     O jovem árabe tirou um livro e começou a ler. O livro estava escrito em
espanhol. "Ainda  bem", pensou  o  Inglês. Sabia falar espanhol  melhor  que
árabe, e se este rapaz  fosse  até  Al-Fayoum, ia  ter alguém para conversar
quando não estivesse ocupado com coisas importantes.


     "Que coisa  engraçada"  ­ pensou o rapaz enquanto tentava mais  uma vez
ler a cena  do  enterro que  iniciava o livro.  ­  "Faz quase dois  anos que
comecei a ler, e não consigo  passar destas páginas".  Mesmo sem um rei para
interrompê-lo,  ele  não  conseguia  se concentrar.  Ainda  estava em dúvida
quanto  à  sua  decisão. Mas  estava  percebendo  uma coisa  importante:  as
decisões  eram  apenas o  começo de  alguma coisa.  Quando alguém tomava uma
decisão, na verdade estava mergulhando numa  correnteza poderosa, que levava
a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir.
     "Quando  resolvi ir  em busca do meu  tesouro, nunca imaginei trabalhar
numa loja  de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocínio.  "Da
mesma maneira, esta  caravana pode ser  uma decisão minha,  mas seu percurso
será sempre um mistério".
     Na sua  frente havia  um europeu também lendo um  livro.  O europeu era
antipático, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam até ter se
tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa.
     O  rapaz fechou o livro. Não queria fazer nada que o deixasse  parecido
com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e começou a brincar com
eles.
     O estrangeiro deu um grito:
     ­ Um Urim e um Tumim!
     O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso.
     ­ Não estão à venda ­ disse.
     ­ Não valem muito ­ disse o Inglês. ­ São cristais de rocha, nada mais.
Há  milhões de cristais de rocha na terra, mas para  quem entende, estes são
Urim e Tumim. Não sabia que eles existiam nesta parte do mundo.
     ­ Foi o presente de um rei ­ disse o rapaz.
     O estrangeiro  ficou mudo.  Depois enfiou  a  mão  no bolso e  retirou,
tremendo, duas pedras iguais.
     ­ Você falou em um rei ­ disse.
     ­ E  você  não acredita que os reis  conversem  com  pastores ­ disse o
rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa.
     ­ Ao contrário. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei  que
o resto  do mundo recusou-se a conhecer.  Por isso é  muito provável que  os
reis conversem com pastores.
     E completou, com medo que o rapaz não estivesse entendendo:


     ­  Está na Bíblia. No mesmo livro  que me ensinou a  fazer este  Urim e
este Tumim.  Estas pedras  eram a única  forma de adivinhação  permitida por
Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro.
     O rapaz ficou contente de estar naquele armazém.
     ­ Talvez isto seja um sinal ­ disse o Inglês, como quem pensa alto.
     ­ Quem lhe  falou  em  sinais?  ­ o interesse  do rapaz crescia a  cada
momento.
     ­  Tudo  na vida são  sinais ­  disse o  Inglês,  desta vez fechando  a
revista que estava lendo.  O Universo é  feito por uma língua que todo mundo
entende,  mas que já se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal,
além de outras coisas.
     "Por isso estou aqui. Porque  tenho que  encontrar um homem que conhece
esta Linguagem Universal. Um Alquimista."
     A conversa foi interrompida pelo chefe do armazém.
     ­ Vocês estão com sorte ­  disse o árabe gordo. ­ Sai hoje à  tarde uma
caravana para Al-Fayoum.
     ­ Mas eu vou ao Egito ­ disse o rapaz.
     ­ Al-Fayoum é no Egito ­ disse o dono.
     ­ Que tipo de árabe você é?
     O  rapaz  disse  que  era  espanhol. O  Inglês ficou  satisfeito: mesmo
vestido como árabe, o rapaz pelo menos era europeu.
     ­ Ele chama  de "sorte" os sinais  ­ disse o Inglês, depois que o gordo
árabe saiu. ­ Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclopédia sobre as
palavras  "sorte" e "coincidência". É com estas palavras  que  se  escreve a
Linguagem Universal.
     Depois  comentou  com  o  rapaz   que  não  havia  sido  "coincidência"
encontrá-lo com o Urim e o Tumim na mão. Perguntou se ele também estava indo
em busca do Alquimista.
     ­ Estou indo em busca  de um tesouro  ­ disse o  rapaz, e arrependeu-se
imediatamente. Mas o Inglês pareceu não dar importância.
     ­ De certa forma, eu também estou, disse.
     ­ E nem  sei  o que quer dizer Alquimia  ­ completou  o rapaz, quando o
dono do armazém começou a chamá-los para fora.





     ­ Eu sou o Líder da Caravana ­ disse  um senhor de barba longa  e olhos
escuros. ­  Tenho poder de vida e  de  morte sobre  cada pessoa que carrego.
Porque o deserto é uma mulher caprichosa, e às vezes deixa os homens loucos.
     Haviam  quase duzentas pessoas, e  o  dobro  de  animais. Eram camelos,
cavalos, burros, aves. O Inglês tinha várias malas, cheias de livros. Haviam
mulheres,  crianças,  e  vários  homens  com espadas  na  cintura  e  longas
espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o  Líder teve
que repetir várias vezes suas palavras para que todos entendessem.
     ­  Há vários homens e deuses diferentes  no coração destes  homens. Mas
meu  único Deus é Allah, e por ele eu juro que  farei  o possível e o melhor
para  vencer mais  uma vez  o deserto. Agora quero que cada um de vocês jure
pelo Deus em que acredita, no fundo


     do seu  coração, de que  irá me obedecer em  qualquer circunstância. No
deserto, a desobediência significa a morte.
     Um murmúrio correu baixo por todas as  pessoas. Estavam  jurando em voz
baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou  por Jesus Cristo. O Inglês ficou em
silêncio. O murmúrio se estendeu um tempo maior do que uma simples  jura; as
pessoas também estavam pedindo proteção aos céus.
     Ouviu-se um longo toque de  clarim,  e cada um montou em seu  animal. O
rapaz  e  o  Inglês  haviam  comprado  camelos,  e  subiram  com  uma  certa
dificuldade. O rapaz ficou  com pena do camelo do  Inglês: estava  carregado
com as pesadas sacolas de livros.
     ­  Não  existem  coincidências ­ disse o Inglês,  tentando  continuar a
conversa que haviam iniciado no armazém.  ­ Foi um amigo  que me trouxe  até
aqui, porque conhecia um árabe, que...
     Mas a  caravana  começou  a andar, e ficou  impossível escutar o  que o
Inglês  estava dizendo.  Entretanto,  o rapaz  sabia  exatamente do  que  se
tratava: a cadeia misteriosa que vai  unindo uma coisa  com  a outra,  que o
tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da
África, e encontrar na praça um rei, e ser roubado para conhecer um mercador
de cristais, e...
     "Quanto mais  se  chega perto  do  sonho,  mais a Lenda  Pessoal vai se
tornando a verdadeira razão de viver", pensou o rapaz.





     A  caravana começou a seguir  em  direção ao poente. Viajavam de manhã,
paravam quando o sol ficava mais forte, e  seguiam de novo ao entardecer.  O
rapaz conversava  pouco com o Inglês,  que passava a  maior parte  do  tempo
entretido pelos livros.
     Então, passou a  observar em silêncio a marcha de animais e homens pelo
deserto. Agora  tudo  era  muito diferente do  dia  em  que  haviam partido:
naquele dia, confusão e gritos, choros e crianças e relinchar de animais, se
misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes.
     No deserto, porém,  havia apenas o vento eterno, o silêncio, e o  casco
dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si.
     "Já cruzei muitas vezes estas areias" ­ disse um cameleiro certa noite.
"Mas o  deserto  é tão  grande,  os horizontes ficam tão longe, que  fazem a
gente se sentir pequeno e permanecer em silêncio".
     O rapaz entendeu o que o  cameleiro queria dizer, mesmo  sem ter pisado
antes num deserto. Todas as vezes que olhava o  mar ou o fogo, era  capaz de
ficar horas em silêncio, sem pensar em nada, mergulhado  na imensidão  e  na
força dos elementos.
     "Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso também
aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais sábio".
     O vento não parava nunca. O  rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este
mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse roçando
de leve pela lã  de suas  ovelhas, que seguiam em busca  de alimento e  água
pelos campos de Andaluzia.
     "Não  são  mais  minhas  ovelhas",  disse para  si  mesmo,  sem  sentir
saudades. "Devem ter  se acostumado  a um novo  pastor,  e já me esqueceram.
Isto  é bom.  Quem está  acostumado  a viajar, como as  ovelhas,  sabe que é
sempre necessário partir um dia".
     Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve  certeza de  que ela
já  havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com  um pastor  que também
soubesse ler e contasse histórias extraordinárias; afinal, ele não devia ser
o único. Mas  ficou  impressionado  com  o  seu  pressentimento: talvez  ele
estivesse aprendendo também esta história de Linguagem Universal, que sabe o
passado e o presente  de todos os  homens. "Pressentimentos",  como sua  mãe
costumava dizer. O rapaz  começou  a entender que os pressentimentos eram os
rápidos mergulhos que a alma  dava nesta corrente  Universal de vida, onde a
história de todos  os  homens  está  ligada entre si, e podemos saber  tudo,
porque tudo está escrito.
     "Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais.

     O deserto era às vezes feito de  areia, e às vezes feito de pedra. Se a
caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam  diante
de um rochedo,  davam  uma  longa volta.  Se a areia era fina  demais para o
casco dos camelos, procuravam um  lugar  onde a areia fosse mais resistente.
Às  vezes o chão estava coberto  de  sal, no lugar onde um  lago devia haver
existido.  Os  animais  então  se  queixavam,  e  os  cameleiros  desciam  e
desatolavam  os  animais.  Depois  colocavam  as cargas nas próprias costas,
passavam pelo chão traiçoeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia
ficava doente ou morria, os cameleiros lançavam a sorte  e escolhiam um novo
guia.
     Mas  tudo  isto acontecia  por uma única  razão:  não importava quantas
voltas  tivesse  que  dar,  a caravana seguia sempre em direção  a um  mesmo
ponto. Depois de vencidos os obstáculos, ela voltava de novo sua frente para
o astro que indicava a posição


     do oásis. Quando as  pessoas  viam aquele astro  brilhando no céu  pela
manhã, sabiam  que ele  indicava um  lugar  com mulheres,  água,  tâmaras  e
palmeiras.  Só o Inglês  não percebia aquilo:  estava a maior parte do tempo
imerso na leitura dos seus livros.
     O rapaz também tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias
de viagem. Mas  achava muito mais interessante olhar a caravana e  escutar o
vento.  Assim  que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se  afeiçoar  a
ele, jogou  o livro fora. Era um peso  desnecessário,  apesar do rapaz haver
criado  a  superstição  de que toda vez que abria o livro, encontrava alguém
importante.
     Terminou fazendo  amizade  com o  cameleiro  que  viajava sempre ao seu
lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas
aventuras como pastor ao cameleiro.
     Numa destas conversas o cameleiro começou a falar de sua vida.
     ­ Eu morava num lugar perto de El Cairum ­ contou. ­ Tinha minha horta,
meus filhos e uma vida que não ia mudar até o dia de minha morte. Num ano em
que a colheita  foi melhor, seguimos  todos  para Meca,  e eu cumpri a única
obrigação que estava faltando na minha vida. Podia morrer  em paz, e gostava
disto.
     "Certo dia a terra começou a tremer, e o Nilo subiu além do seu limite.
Aquilo que eu pensava  que só acontecia com os outros,  terminou acontecendo
comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inundação;
minha mulher  teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas águas. E
eu tive pavor de ver destruído tudo que havia conquistado.
     "Mas não houve jeito.  A terra ficou  imprestável  e tive que  arranjar
outro meio de vida.
     Hoje  sou  cameleiro. Mas aí entendi  a palavra de Allah: ninguém sente
medo do desconhecido, porque  qualquer pessoa é capaz de conquistar tudo que
quer e necessita.
     "Só  sentimos medo de perder aquilo que temos,  sejam  nossas  vidas ou
nossas plantações. Mas este  medo passa quando entendemos que nossa história
e a história do mundo foram escritas pela mesma Mão".


     Às vezes as caravanas se encontravam durante a noite.  Sempre uma delas
tinha o que a outra estava precisando ­ como se realmente tudo fosse escrito
por uma  só Mão. Os cameleiros trocavam informações  sobre as tempestades de
vento, e  se  reuniam em  torno das  fogueiras,  contando  as  histórias  do
deserto.
     Outras vezes chegavam misteriosos homens encapuçados; eram beduínos que
espionavam a  rota seguida pelas caravanas.  Davam notícias de assaltantes e
tribos  bárbaras. Chegavam  no silêncio e partiam no silêncio, com as roupas
negras deixando apenas os olhos de fora.

     Numa  destas noites o cameleiro veio até  a fogueira onde  o rapaz  e o
Inglês estavam sentados.
     ­ Há rumores de guerra entre os clãs ­ disse o cameleiro.
     Os três ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo  que
ninguém tivesse  dito nenhuma  palavra.  Mais  uma vez  estava percebendo  a
linguagem sem palavras, a Linguagem Universal.
     Depois de certo tempo, o Inglês perguntou se havia perigo.


     ­ Quem entra no deserto não pode voltar  ­  disse o cameleiro. ­ Quando
não  se  pode  voltar, só devemos ficar  preocupado  com a melhor maneira de
seguir em frente. O resto é por conta de Allah, inclusive o perigo.
     E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub".
     ­ Você  precisa prestar  mais atenção às caravanas ­  disse  o rapaz ao
Inglês, depois  que o cameleiro saiu. ­  Elas dão  muitas  voltas, mas rumam
sempre para o mesmo lugar.
     ­ E você devia ler mais sobre o mundo ­ respondeu o Inglês. ­ Os livros
são iguais às caravanas.

     O imenso grupo de homens e animais começou a andar mais rápido. Além do
silêncio durante o dia, as noites ­ quando as pessoas costumavam  se  reunir
para  conversar  em  torno   das  fogueiras  ­  começaram  a  ficar   também
silenciosas. Certo dia o Líder  da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam
mais ser acesas, para não chamar a atenção sobre a caravana.
     Os viajantes passaram  a  fazer uma  roda  de animais, e dormiam  todos
juntos  no centro, tentando  se  proteger do frio noturno. O Líder  passou a
instalar sentinelas armadas em volta do grupo.
     Numa daquelas  noites o Inglês não conseguiu dormir.  Chamou o rapaz  e
começaram  a  passear pelas dunas em  volta do acampamento. Era uma noite de
lua cheia, e o rapaz contou ao Inglês toda a sua história.
     O  Inglês ficou fascinado com a loja que havia progredido depois  que o
rapaz começou a trabalhar nela.
     ­ Este é o princípio que move todas  as coisas ­ disse. ­ Na Alquimia é
chamado  de Alma  do Mundo. Quando você deseja algo de  todo  o seu coração,
você está mais próximo da Alma do Mundo. Ela é sempre uma força positiva.
     Disse também que isto não era apenas um dom dos homens: todas as coisas
sobre a face da Terra tinham também uma alma, não importando se era mineral,
vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento.
     ­ Tudo  que  está sob e  sobre a  face da Terra  se transforma  sempre,
porque  a Terra  está  viva;  e  tem  uma  alma. Somos  parte desta  Alma, e
raramente sabemos que ela  sempre trabalha em  nosso  favor.  Mas  você deve
entender que, na loja  dos cristais, até mesmo  os vasos estavam colaborando
para o seu sucesso.
     O  rapaz ficou em silêncio  por algum tempo, olhando a lua  e  a  areia
branca.
     ­ Tenho  visto a caravana  caminhando  através  do deserto ­ disse, por
fim. ­ Ela e o deserto falam a mesma língua, e por  isso ele permite que ela
o  atravesse.  Vai testar  cada passo  seu,  para  ver se está  em  perfeita
sintonia com ele; e se estiver, ela chegará até o oásis.
     "Se um de  nós  chegasse aqui com muita coragem, mas  sem entender esta
língua, ia morrer no primeiro dia."
     Continuaram olhando a lua, juntos.
     ­ Esta é a magia dos sinais ­ continuou o rapaz. ­ Tenho  visto como os
guias  lêem os sinais  do deserto, e como a alma da  caravana conversa com a
alma do deserto.
     Depois de algum tempo, foi a vez do Inglês falar.
     ­ Preciso prestar mais atenção à caravana ­ disse, por fim.
     ­ E eu preciso ler seus livros ­ falou o rapaz.






     Eram livros estranhos. Falavam em  mercúrio, sal,  dragões e reis,  mas
ele não  conseguia entender  nada. Entretanto, havia uma  idéia  que parecia
repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifestações de uma
coisa só.
     Num  dos livros  ele descobriu que o texto mais importante  da Alquimia
tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda.
     ­ É a Táboa da Esmeralda ­ falou o Inglês, orgulhoso por ensinar alguma
coisa ao rapaz.
     ­ E então, para que tantos livros?
     ­  Para entender estas linhas ­ respondeu  o  Inglês, sem  estar  muito
convencido da própria resposta.

     O livro que mais interessou ao rapaz contava a história dos alquimistas
famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais
nos laboratórios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos
e muitos  anos,  terminaria  se libertando  de  todas as  suas  propriedades
individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa Única
permitia que  os  alquimistas  entendessem qualquer  coisa  sobre a  face da
Terra, porque ela era  a linguagem pela qual as  coisas se comunicavam. Eles
chamavam esta descoberta de  Grande Obra ­  que era  composta  de  uma parte
líquida e uma parte sólida.
     ­ Não basta  observar os homens e  os  sinais, para  se  descobrir esta
linguagem? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Você tem mania de simplificar tudo ­ respondeu o Inglês irritado. ­ A
Alquimia é um trabalho sério. Precisa que cada passo seja seguido exatamente
como os mestres ensinaram.
     O  rapaz descobriu que  a  parte líquida da Grande Obra era chamada  de
Elixir da Longa  Vida,  e curava todas as  doenças, além  de  evitar  que  o
alquimista ficasse velho. E a parte sólida era camada de Pedra Filosofal.
     ­  Não é fácil  descobrir a  Pedra  Filosofal  ­  disse o Inglês. ­  Os
alquimistas ficavam  muitos anos nos  laboratórios,  olhando aquele fogo que
purificava os metais.  Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabeças iam
perdendo todas as  vaidades do  mundo. Então, um belo dia, descobriam que  a
purificação dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos.
     O rapaz se lembrou do  Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha
sido bom  limpar seus vasos,  para que ambos  se libertassem também dos maus
pensamentos. Estava cada vez mais convencido de  que a Alquimia poderia  ser
aprendida na vida diária.
     ­ Além disso ­  falou o Inglês ­ a  Pedra Filosofal tem uma propriedade
fascinante.  Uma   pequena  lasca  dela  é  capaz   de  transformar  grandes
quantidades de metal em ouro.
     A  partir  desta  frase, o  rapaz  ficou interessadíssimo  em Alquimia.
Pensava que, com um  pouco  de paciência, poderia transformar  tudo em ouro.
Leu  a  vida de várias  pessoas que  tinham  conseguido:  Helvetius,  Elias,
Fulcanelli, Geber.  Eram histórias fascinantes: todos estavam  vivendo até o
fim sua  Lenda  Pessoal.  Viajavam, encontravam  sábios,  faziam milagres na
frente dos incrédulos, possuíam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida.


     Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava
completamente  perdido. Eram apenas desenhos,  instruções  em código, textos
obscuros.


     ­  Por que eles falam tão difícil? ­ perguntou  certa noite ao  Inglês.
Notou também que o Inglês  andava  meio aborrecido e sentindo  falta de seus
livros.
     ­  Para que só os que têm  responsabilidade de entender  que entendam ­
disse ele.  ­ Imagine  se  todo mundo saísse  transformando chumbo em  ouro.
Daqui a pouco o ouro não ia valer nada.
     "Só os persistentes, só aqueles  que pesquisam muito, é que conseguem a
Grande  Obra. Por  isso  estou  no  meio  deste deserto.  Para  encontrar um
verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os códigos".
     ­ Quando foram escritos estes livros? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Há muitos séculos atrás.
     ­ Naquela época não havia imprensa ­ insistiu o  rapaz. Não havia jeito
de todo mundo tomar  conhecimento  da Alquimia.  Por  que esta linguagem tão
estranha, cheia de desenhos?
     O Inglês  não respondeu nada. Disse que há vários dias estava prestando
atenção  à caravana,  e que não conseguia descobrir nada de  novo.  A  única
coisa que tinha notado era que os comentários sobre a guerra aumentavam cada
vez mais.


     Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao Inglês.
     ­  Então,  aprendeu   muita  coisa?  ­  perguntou  o  outro,  cheio  de
expectativa.  Estava precisando  de alguém  com quem pudesse  conversar para
esquecer o medo da guerra.
     ­  Aprendi  que  o  mundo tem uma  Alma,  e  quem entender  esta  Alma,
entenderá a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua
Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o
Elixir.
     "Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas são tão simples que podem ser
escritas numa esmeralda".
     O Inglês ficou decepcionado. Os anos de estudo, os símbolos mágicos, as
palavras   difíceis,  os   aparelhos  de  laboratório,   nada  disso   havia
impressionado  o  rapaz.  "Ele  deve  ter  uma  alma primitiva  demais  para
compreender isto", apensou.
     Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo.
     ­ Volte para sua caravana ­ disse. ­ Ela tampouco  me  ensinou qualquer
coisa.
     O rapaz voltou  a contemplar o silêncio do deserto e a areia  levantada
pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo.
"A maneira  dele não  é a minha, e  minha maneira  não  é a  dele. Mas ambos
estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto".




     A caravana  começou  a viajar  dia  e  noite . A toda hora apareciam os
mensageiros  encapuçados,  e o cameleiro ­ que  haviam se  tornado  amigo do
rapaz  ­ explicou que a guerra entre os  clãs  havia  começado. Teriam muita
sorte se conseguissem chegar ao oásis.
     Os animais estavam  exaustos, e os homens cada vez  mais silenciosos. O
silêncio  era mais terrível na parte da noite, quando um simples relincho de
camelo ­ que antes não passava de um relincho de  camelo ­ agora assustava a
todos e podia ser um sinal de invasão.
     O cameleiro, porém, parecia não  se impressionar muito com  a ameaça de
guerra.
     ­ Estou vivo ­ disse ao  rapaz, enquanto comia  um prato de  tâmaras na
noite sem fogueiras  e sem lua. ­ Enquanto estou comendo, não faço nada além
de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, será
um dia tão bom para morrer como qualquer outro.
     "Porque não vivo  nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o
presente, e ele  é  o  que me interessa.  Se você puder permanecer sempre no
presente,  então  será um  homem feliz.  Vai  perceber que no deserto existe
vida, que  o céu tem estrelas,  e  que  os guerreiros lutam porque  isto faz
parte da raça humana. A  vida será uma festa, um grande festival, porque ela
é sempre e apenas o momento que estamos vivendo."
     Duas noites depois, quando  se preparava para  dormir, o rapaz olhou em
direção ao astro  que seguiam durante a noite. Achou que o  horizonte estava
um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.
     ­ É o oásis ­ disse o cameleiro.
     ­ E porque não chegamos lá imediatamente?
     ­ Porque precisamos dormir.


     O rapaz abriu os olhos  quando o  sol  começava  a surgir no horizonte.
Diante  dele,  onde  as pequenas estrelas  haviam  estado  durante  a noite,
estendia-se uma  fila interminável de tamareiras, cobrindo toda a frente  do
deserto.
     ­ Conseguimos! ­ disse o Inglês, que também tinha acabado de acordar.
     O rapaz, porém, mantinha-se calado.  Aprendera o silêncio do deserto, e
contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar
muito para chegar até as  Pirâmides,  e algum dia aquela manhã seria  apenas
uma lembrança. Mas agora  ela  era o momento presente, a festa da qual havia
falado o cameleiro,  e ele  estava procurando vivê-lo  com as  lições do seu
passado  e os  sonhos  do seu futuro. Um dia, aquela  visão  de milhares  de
tamareiras  seria  apenas  uma  lembrança.  Mas  para  ele,  neste  momento,
significava sombra, água, e um refúgio para a guerra. Assim como um relincho
de camelo  podia se  transformar em perigo,  uma  fila de  tamareiras  podia
significar um milagre.
     "O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz.




     "Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm também", pensou o
Alquimista, enquanto  via chegar centenas de pessoas e  animais ao Oásis. As
pessoas  gritavam  atrás  dos  recém-chegados, a  poeira  encobria o sol  do
deserto,  e  as  crianças  pulavam de  excitação  ao  ver  os  estranhos.  O
Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do Líder da Caravana, e
conversarem longamente entre si.
     Mas nada daquilo interessava ao  Alquimista. Já havia visto muita gente
chegar e partir, enquanto o Oásis  e o  deserto  permaneciam o  mesmo. Tinha
visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por
causa  do  vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando criança.
Mesmo  assim, não conseguia  conter  no fundo  do  seu  coração  um pouco da
alegria  de  vida que  todo viajante experimentava  quando,  depois de terra
amarela  e céu  azul, o verde das tamareiras aparecia diante de  seus olhos.
"Talvez Deus  tenha criado o deserto para que  o homem pudesse sorrir com as
tamareiras", pensou ele.
     Depois  resolveu  concentrar-se  em assuntos mais  práticos.  Sabia que
naquela caravana vinha o homem a quem devia  ensinar parte de seus segredos.
Os sinais  lhe haviam contado isto. Ainda não conhecia  este homem, mas seus
olhos experimentados o  reconheceriam  quando  o visse.  Esperava que  fosse
alguém tão capaz como seu aprendiz anterior.
     "Não sei  porque estas coisas  tem que  ser  transmitidas de  boca para
ouvido",  pensava ele.  Não era exatamente  porque as  coisas eram secretas;
Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas.
     Ele só conhecia uma explicação para este fato: as coisas tinham que ser
transmitidas assim  porque elas  seriam feitas de  Vida Pura, e este tipo de
vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras.
     Porque  as pessoas se fascinam com  pinturas e  palavras, e terminam se
esquecendo da Linguagem do Mundo.






     Os recém-chegados  foram trazidos imediatamente  à  presença dos chefes
tribais  de Al-Fayoum.  O rapaz não podia acreditar no que estava vendo:  ao
invés  de  um  poço cercado de algumas palmeiras ­ como havia lido certa vez
num livro  de história ­ o oásis era  muito maior do  que  várias aldeias da
Espanha. Tinha  trezentos poços, cinqüenta mil  tamareiras, e muitas  tendas
coloridas espalhadas entre elas.
     ­ Parece  as  Mil  e  Uma  Noites  ­ disse  o Inglês,  impaciente  para
encontrar-se logo com o Alquimista.
     Foram cercados logo pelas crianças, que olhavam curiosas os animais, os
camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam  saber se tinham visto
algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e  pedras que os
mercadores haviam trazido. O silêncio do  deserto parecia um sonho distante;
as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem saído de  um
mundo espiritual, para estarem de novo entre  os homens. Estavam contentes e
felizes.
     Apesar  das  precauções do dia anterior, o cameleiro explicou ao  rapaz
que os oásis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros,  porque a
maior parte dos habitantes eram mulheres e crianças. E haviam oásis tanto de
um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam
os oásis como cidades de refúgio.
     O Líder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e começou a
dar as instruções. Iam permanecer ali até que a guerra entre os clãs tivesse
terminada.   Como  eram  visitantes,   deviam  compartilhar  as  tendas  com
habitantes  do  oásis,  que  lhes  dariam   seus  melhores  lugares.  Era  a
hospitalidade  da  Lei.  Depois  pediu que todos,  inclusive  seus  próprios
sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais.
     ­ São  as  regras da  Guerra  ­  explicou o  Líder  da Caravana.  Desta
maneira, os oásis não poderiam abrigar exércitos ou guerreiros.
     Para  surpresa  do  rapaz,  o Inglês tirou  de  seu  casaco um revólver
cromado e entregou ao homem que recolhia as armas.
     ­ Para que um revólver? ­ perguntou.
     ­  Para  aprender  a confiar  nos homens ­ respondeu o  Inglês.  Estava
contente por haver chegado ao final de sua busca.
     O rapaz, porém, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de
seu sonho, mais as  coisas se tornavam difíceis.  Não funcionava mais aquilo
que  o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava,
sabia ele, era o teste da persistência  e da coragem de quem busca sua Lenda
Pessoal. Por isso ele não podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse
assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho.
     "Deus colocou no meu caminho", pensou  o rapaz, surpreso consigo mesmo.
Até aquele momento considerava os sinais como uma coisa  do mundo. Algo como
comer ou dormir, algo  como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca
tinha  pensado  que  esta  era uma  linguagem que Deus  estava  usando  para
mostrar-lhe o que devia fazer.
     "Não fique impaciente", repetiu o rapaz para  si  mesmo. "Como disse  o
cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar".



     No primeiro dia todos dormiram de cansaço, inclusive o Inglês. O  rapaz
havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de  idade quase
igual a sua. Eram gente do  deserto, e  queriam saber histórias  das grandes
cidades.
     O  rapaz falou  de  sua  vida  como pastor, e ia começar  a contar  sua
experiência na loja de cristais, quando o Inglês entrou na tenda.
     ­ Procurei-o a manhã  inteira ­  disse, enquanto carregava o rapaz para
fora. ­ Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista.
     Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver
de maneira diferente  das outras pessoas  do oásis, e em sua tenda era muito
provável que um forno estivesse sempre  aceso. Andaram bastante, até ficarem
convencidos que o oásis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas
centenas de tendas.
     ­  Perdemos  quase  o dia inteiro ­  disse o  Inglês, sentando-se com o
rapaz perto de um dos poços do oásis.
     ­ Talvez seja melhor perguntarmos ­ disse o rapaz.
     O Inglês  não queria  contar aos outros sua presença no Oásis,  e ficou
bastante  indeciso. Mas  acabou  concordando e  pediu ao  rapaz, que  falava
melhor o árabe,  para  fazer isto. O rapaz  se  aproximou  de uma mulher que
havia chegado no poço para encher de água um saco de pele de carneiro.
     ­ Boa  tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um  Alquimista neste
oásis ­ perguntou o rapaz.
     A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente
embora. Antes, porém, avisou ao rapaz que não deveria conversar com mulheres
vestidas de preto, porque  eram  mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a
Tradição.
     O  Inglês ficou decepcionadíssimo. Tinha  feito  toda a  sua viagem por
nada. O rapaz também ficou triste; seu companheiro também estava em busca de
sua Lenda Pessoal. E quando alguém faz isto, o Universo todo se esforça para
que a  pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele não podia estar
enganado.
     ­ Eu  nunca tinha ouvido falar antes  de alquimistas ­ disse o rapaz. ­
Senão tentaria ajudá-lo.
     Alguma coisa brilhou nos olhos do Inglês.
     ­ É  isto! Talvez ninguém aqui saiba o que  é um  alquimista!  Pergunte
pelo homem que cura todas as doenças da aldeia!
     Várias mulheres vestidas de preto vieram buscar água no poço, e o rapaz
não conversou com elas, por mais que o Inglês  insistisse. Até que um  homem
se aproximou.
     ­ Conhece alguém que cura as doenças da aldeia? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Allah cura todas as doenças, ­ disse o homem, visivelmente  apavorado
com os estrangeiros. ­ Vocês estão em busca de bruxos.
     E depois de dizer alguns versículos do Alcorão, seguiu seu caminho.
     Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno
balde. O rapaz repetiu a pergunta.
     ­ Por que vocês querem conhecer este tipo de homem? ­ respondeu o árabe
com outra pergunta.
     ­ Porque  meu amigo  viajou  muitos  meses para  encontrá-lo ­ disse  o
rapaz.
     ­ Se este homem existe no  oásis, deve  ser  muito  poderoso ­  disse o
velho, depois  de  pensar por  alguns  instantes. ­ Nem  os  chefes  tribais
conseguiriam vê-lo quando precisam. Só quando ele assim determinasse.


     "Esperem o final da guerra. E então partam com a caravana. Não procurem
entrar na vida do oásis", concluiu, se afastando.
     Mas o Inglês ficou exultante. Estavam na pista certa.
     Finalmente surgiu uma moça que  não estava vestida de negro.  Trazia um
cântaro  no  ombro,  e a cabeça  coberta  com  um  véu,  mas  tinha  o rosto
descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista.

     Então foi como se o tempo parasse, e a  Alma do Mundo surgisse com toda
a força  diante  do rapaz.  Quando ele olhou seus  olhos negros, seus lábios
indecisos  entre  um  sorriso  e  o  silêncio,  ele  entendeu a  parte  mais
importante e mais sábia da Linguagem que  o  mundo  falava,  e que todas  as
pessoas  da terra eram  capazes de  entender  em  seus  corações. E isto era
chamado de  Amor, uma  coisa  mais antiga que  os  homens  e  que  o próprio
deserto,  e que no entanto ressurgia  sempre com a mesma força onde quer que
dois pares de  olhos  se  cruzassem como se  cruzaram aqueles  dois pares de
olhos diante de um  poço. Os lábios finalmente resolveram dar  um sorriso, e
aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou  sem saber durante  tanto tempo
em sua vida, que tinha buscado  nas ovelhas e nos  livros, nos cristais e no
silêncio do deserto.
     Ali  estava a pura  linguagem  do  mundo,  sem  explicações,  porque  o
Universo  não precisava de  explicações para continuar seu caminho no espaço
sem  fim.  Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante
da mulher de sua  vida, e  sem  nenhuma necessidade  de  palavras, ela devia
saber disto também.  Tinha mais certeza  disto do que  de  qualquer coisa no
mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso
namorar, noivar, conhecer  a pessoa e ter dinheiro antes  de se casar.  Quem
dizia isto talvez  jamais tivesse conhecido a  linguagem  universal,  porque
quando  se  mergulha nela, é fácil entender  que sempre existe  no mundo uma
pessoa que espera  a  outra,  seja no  meio de um  deserto, seja no meio das
grandes cidades.  E  quando  estas  pessoas  se  cruzam,  e  seus  olhos  se
encontram, todo  o passado e todo o futuro perde qualquer  importância, e só
existe  aquele momento,  e aquela certeza  incrível de que  todas  as coisas
debaixo do sol foram escritas pela mesma Mão.  A Mão que  desperta o Amor, e
que  fez  uma alma gêmea  para  cada pessoa  que trabalha, descansa  e busca
tesouros debaixo  do sol. Porque  sem isto não haveria qualquer sentido para
os sonhos da raça humana.
     "Maktub", pensou o rapaz.

     O Inglês levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz.
     ­ Vamos, pergunte a ela!
     O rapaz se aproximou da moça. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu também.
     ­ Como você se chama? ­ perguntou.
     ­ Me chamo Fátima ­ disse a moça, olhando para o chão.
     ­ É um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho.
     ­  É  o  nome da  filha do Profeta ­  disse Fátima. ­ Os guerreiros  os
levaram para lá.
     A moça delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao  seu lado o Inglês
insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doenças.
     ­ É um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do
deserto ­ ela falou.
     Os  djins eram os demônios. E a moça apontou para  o  sul, para o lugar
onde aquele estranho homem morava.


     Depois encheu seu cântaro e partiu. O Inglês partiu também, em busca do
Alquimista. E o  rapaz  ficou por  muito tempo  sentado  ao  lado  do  poço,
entendendo  que  algum  dia  o Levante havia deixado em seu rosto o  perfume
daquela mulher, e que já a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que
seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo.






     No dia seguinte o rapaz voltou para  o poço,  para esperar a moça. Para
sua surpresa, encontrou lá o Inglês, olhando pela primeira vez o deserto.
     ­ Esperei a tarde e a noite ­ disse o Inglês. ­ Ele chegou junto com as
primeiras estrelas.  Eu lhe contei o  que  estava  procurando. Então  ele me
perguntou se já havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que
queria aprender.
     "Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: vá tentar".
     O rapaz ficou quieto. O  Inglês havia viajado tanto para ouvir o que já
sabia. Aí ele  se  lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao  velho rei pela
mesma razão.
     ­ Então tente ­ disse para o Inglês.
     ­ É isto que vou fazer. E vou começar agora.
     Pouco depois que o Inglês saiu, Fátima chegou para apanhar água com seu
cântaro.
     ­ Vim dizer-lhe uma coisa simples  ­ falou o rapaz. ­ Eu quero que você
seja minha mulher. Eu te amo.
     A moça deixou que seu cântaro derramasse a água.
     ­  Vou  esperá-la todos os  dias aqui. Cruzei o deserto  em busca de um
tesouro que se encontra perto  das pirâmides.  A  guerra foi  para  mim  uma
maldição. Agora ela é uma bênção, porque me deixa perto de você.
     ­ A guerra um dia vai acabar ­ disse a moça.
     O rapaz olhou as tamareiras do oásis. Havia sido pastor. E ali existiam
muitas ovelhas. Fátima era mais importante que o tesouro.
     ­ Os guerreiros buscam seus  tesouros ­ disse a moça, como se estivesse
adivinhando o  pensamento  do rapaz. ­  E as mulheres do deserto têm orgulho
dos seus guerreiros.
     Depois tornou a encher seu cântaro, e foi embora.

     Todos  os dias o rapaz ia para o poço esperar Fátima. Contou-lhe de sua
vida de pastor,  do rei, da loja de  cristais. Ficaram amigos, e com exceção
quinze minutos que passava  com ela, o resto  do dia custava infinitamente a
passar. Quando  já estava  há  quase um  mês no oásis, o  Líder  da Caravana
convocou a todos para uma reunião.
     ­ Não sabemos quando a guerra vai acabar, e não podemos seguir viagem ­
disse.
     ­ Os combates devem durar por  muito tempo, talvez muitos anos. Existem
guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater
em ambos os  exércitos. Não  é  uma guerra  entre bons e maus. É uma  guerra
entre forças  que  lutam pelo  mesmo  poder, e quando este  tipo  de batalha
começa, demora mais que as outras ­ porque Allah está dos dois lados.
     As pessoas se  dispersaram.  O rapaz tornou a  encontrar-se  com Fátima
aquela tarde, e contou da reunião.
     ­ No segundo dia que nos encontramos ­ disse Fátima ­ você me falou  do
seu  amor. Depois me  ensinou  coisas belas, como  a  Linguagem e a Alma  do
Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de você.
     O rapaz ouvia  sua  voz, e achava  mais bela que o barulho do vento nas
folhas das tamareiras.


     ­ Faz  muito tempo, que estive aqui neste poço esperando por você.  Não
consigo me lembrar  do meu  passado, da  Tradição, da maneira  que os homens
esperam  que se comportem as mulheres do deserto. Desde criança  eu  sonhava
que o  deserto  ia me trazer o maior presente  de minha vida. Este  presente
chegou afinal, e é você.
     O rapaz  pensou  em  tocar sua mão. Mas  Fátima  segurava as  alças  do
cântaro.
     ­ Você me falou dos  seus sonhos,  do velho rei, e do  tesouro. Você me
falou dos sinais. Então não tenho  medo de nada,  porque foram estes  sinais
que me trouxeram você.  E eu  sou parte do seu sonho, da sua Lenda  Pessoal,
como você costuma chamar.
     "Por isso quero que siga em  direção  ao que  veio buscar. Se tiver que
esperar o final da  guerra, muito  bem. Mas se tiver que seguir antes, vá em
direção à sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto  permanece no
mesmo. Assim será com nosso amor.
     "Maktub" ­ disse. "Se eu for parte de sua Lenda, você voltará um dia".

     O rapaz saiu  triste do  encontro com Fátima. Ele se  lembrava de muita
gente que havia  conhecido.  Os pastores casados tinham muita dificuldade em
convencer suas esposas  de  que precisavam andar pelos campos. O amor exigia
estar junto da pessoa amada.
     No dia seguinte ele contou tudo isto à Fátima.
     ­  O deserto leva nossos homens e nem  sempre os traz de volta ­  disse
ela. ­  Então nos acostumamos com  isto. E eles passam a existir nas  nuvens
sem chuva,  nos animais que se escondem entre  as pedras, na  água  que  sai
generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do
Mundo.
     "Alguns  retornam. E  então  todas as  outras mulheres  ficam  felizes,
porque  os  homens que elas  esperam  também podem voltar  um dia.  Antes eu
olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter  também  uma
pessoa para esperar.
     "Sou  uma  mulher do deserto e me  orgulho disto.  Quero que  meu homem
também caminhe livre como o  vento que move as dunas. Quero também poder ver
meu homem nas nuvens, nos animais e na água."

     O rapaz foi procurar o  Inglês. Queria  contar-lhe  sobre Fátima. Ficou
surpreso quando  viu que o  Inglês havia construído um pequeno forno ao lado
de  sua tenda. Era  um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O
Inglês alimentava o fogo com lenha, e olhava  o deserto. Seus olhos pareciam
ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros.
     ­ Esta é a  primeira fase do  trabalho ­  disse o  Inglês.  ­ Tenho que
separar  o  enxofre impuro. Para isto, nao posso ter  medo  de falhar. O meu
medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra até hoje.  É agora
que estou começando o que podia ter começado há dez anos atrás. Mas me sinto
feliz de não ter esperado vinte anos para isto.
     E continuou a alimentar o  fogo e  a olhar o deserto. O  rapaz ficou ao
seu lado por algum tempo, até que o deserto começou a ficar rosado com a luz
do entardecer. Então ele sentiu uma imensa vontade de ir até lá, para ver se
o silêncio conseguia responder suas perguntas.
     Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras  do  oásis
ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus pés.
Às vezes  encontrava  alguma concha,  e sabia que aquele deserto,  num tempo
remoto,  havia sido um grande mar. Depois  sentou-se  numa pedra e deixou-se
hipnotizar pelo horizonte que existia


     na sua frente. Não conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse;
mas Fátima era uma mulher do deserto, e se  alguém  podia lhe ensinar  isto,
era o deserto.
     Ficou assim, sem pensar em nada, até que pressentiu  um movimento sobre
sua  cabeça. Olhando para  o  céu,  viu que eram dois gaviões,  voando muito
alto.
     O  rapaz  começou a olhar os gaviões, e os desenhos que eles  faziam no
céu. Parecia uma coisa desordenada, entretanto,  tinham algum sentido para o
rapaz.  Apenas não conseguia compreender seu significado. Decidiu  então que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos pássaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
     Começou  a sentir sono.  Seu  coração pediu para que  não  dormisse: ao
invés disto, devia  se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo  nesta  terra faz  sentido, até  mesmo  o  vôo  de  gaviões", disse.  E
aproveitou para  agradecer  pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
     De repente, um gavião deu um rápido mergulho no  céu e atacou o  outro.
Quando  fez este  movimento, o  rapaz  teve  uma  súbita e rápida  visão: um
exército, de espadas desembainhadas, entrando no oásis. A visão logo  sumiu,
mas aquilo lhe deixou  sobressaltado. Havia ouvido falar das  miragens, e já
havia  visto algumas: eram desejos que  se  materializavam  sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele não desejava um exército invadindo o oásis.
     Pensou  em esquecer aquilo e  voltar  à sua meditação. Tentou novamente
concentrar-se no deserto côr-de-rosa e nas  pedras. Mas  alguma coisa em seu
coração não o deixava quieto.
     "Siga  sempre  os sinais", dissera o velho  rei.  E  o rapaz pensou  em
Fátima. Lembrou-se do que havia  visto,  e pressentiu que  estava próximo de
acontecer.
     Com  muita  dificuldade,  saiu  do  transe   em   que  havia   entrado.
Levantou-se,  e começou  a caminhar  em direção  às tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o oásis se transformara em perigo.

     O cameleiro  estava sentado aos pés de  uma tamareira, também olhando o
pôr-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detrás de uma das dunas.
     ­ Um exército se aproxima ­ disse. ­ Tive uma visão.
     ­ O  deserto enche  de  visões  o coração  de um  homem ­  respondeu  o
cameleiro.
     Mas o rapaz lhe contou dos gaviões: estava olhando seu vôo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
     O  cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que  qualquer coisa  na face da  terra  pode  contar a  história de todas as
coisas. Se abrisse  um  livro em qualquer  página,  ou olhasse  as mãos  das
pessoas, ou cartas de baralho, ou vôo dos pássaros, ou  seja lá o que fosse,
qualquer pessoa  iria encontrar  um laço  com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, não eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
     O  deserto  estava  cheio de homens que ganhavam a  vida porque  podiam
penetrar  com facilidade na Alma do  Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos  por  mulheres  e velhos.  Os Guerreiros  raramente  os consultavam,
porque era impossível entrar numa batalha  sabendo quando  se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor  da  luta e a emoção do  desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele


     tivesse escrito, era sempre para o  bem do  homem. Então os  Guerreiros
viviam  apenas o  presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham  que  prestar  atenção em  muitas coisas:  onde  estava  a  espada do
inimigo,  onde estava seu  cavalo,  qual o  próximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
     O cameleiro não era Guerreiro, e  já havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
     Até que um  deles, o  mais velho  (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava tão interessado em saber o futuro.
     ­  Para que possa fazer as coisas ­ respondeu o  cameleiro. ­ E mudar o
que não gostaria que acontecesse.
     ­ Então deixará de ser seu futuro ­ respondeu o adivinho.
     ­ Talvez então eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que virão.
     ­ Se forem coisas  boas,  isto será uma  agradável  surpresa ­ disse  o
adivinho. ­ Se forem coisas ruins, você  estará  sofrendo muito  antes delas
acontecerem.
     ­ Quero saber o futuro  porque sou  um homem ­ disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em função do seu futuro.
     O adivinho  ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no  jogo
de varetas, que eram atiradas no chão e interpretadas da maneira  que caíam.
Naquele  dia ele não jogou as varetas.  Envolveu-as  num  lenço  e  tornou a
colocar no bolso.
     ­ Ganho a vida  adivinhando o futuro das pessoas ­ disse ele. ­ Conheço
a ciência das varetas, e sei como utilizá-la para penetrar neste espaço onde
tudo  está  escrito.  Ali posso  ler  o passado,  descobrir  o  que  já  foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
     "Quando as  pessoas me consultam, eu  não estou  lendo o  futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele só o revela  em
circunstâncias  extraordinárias.  E como  consigo adivinhar o  futuro? Pelos
sinais  do presente.  No  presente é  que  está  o segredo; se você  prestar
atenção no presente, poderá melhorá-lo. E se você melhorar o presente, o que
acontecerá depois também será melhor.  Esqueça o futuro e  viva cada  dia de
sua vida nos  ensinamentos da Lei, e na confiança de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
     O cameleiro quis saber quais as circunstâncias em que Deus permitia ver
o futuro:
     ­ Quando  Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro  raramente, e  por
uma única razão: é um futuro que foi escrito para ser mudado.

     Deus  tinha  mostrado um futuro  ao rapaz,  pensou  o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
     ­  Vá  falar com os chefes  tribais  ­ disse  o  cameleiro. ­ Conte dos
guerreiros que se aproximam.
     ­ Eles vão rir de mim.
     ­ São homens do deserto,  e os homens do deserto estão  acostumados com
os sinais.
     ­ Então já devem saber.
     ­ Não estão preocupados  com  isto. Acreditam que se tiverem que  saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dirá isto. Já aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa é você.
     O rapaz pensou em Fátima. E resolveu ir ver os chefes tribais.




     ­ Trago sinais  do deserto ­ disse  ao  guarda que ficava  na  porta da
imensa tenda branca no centro do oásis. ­ Quero ver os chefes.
     O guarda não disse nada. Entrou e  demorou-se muito  lá  dentro. Depois
saiu com um árabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
     A noite caiu. Entraram e saíram vários árabes  e mercadores. Aos poucos
as fogueiras  foram se apagando, e  o  oásis começou a  ficar tão silencioso
como o deserto. Só a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo,  o  rapaz pensava em Fátima,  ainda  sem entender a  conversa daquela
tarde.
     Finalmente,  depois de muitas horas  de espera, o  guarda mandou  que o
rapaz entrasse.
     O que viu deixou-o  extasiado. Nunca  poderia imaginar  que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela.  O chão estava coberto com os mais
belos  tapetes que já  havia  pisado,  e do teto  pendiam lustres  de  metal
amarelo  trabalhado,  coberto  de  velas acessas.  Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semicírculo, descansando seus braços e pernas
em  almofadas de  seda com  ricos  bordados.  Criados  entravam e  saíam com
bandejas de prata  cheias  de especiarias e chá.  Alguns  se encarregavam de
manter acesas as  brasas dos  narguilés. Um suave  perfume  de fumo enchia o
ambiente.
     Haviam  oito  chefes,  mas o  rapaz  logo  percebeu  quem  era  o  mais
importante:  um  árabe  vestido  de  branco  e ouro,  sentado no  centro  do
semicírculo.  Ao  seu  lado estava  o jovem  árabe com quem tinha conversado
antes.
     ­ Quem é o estrangeiro que fala de sinais?  ­ perguntou  um dos chefes,
olhando para ele.
     ­ Eu sou ­ respondeu. E contou o que havia visto.
     ­ E  por que o deserto ia contar  isto a um estranho, quando  sabe  que
estamos há várias gerações aqui? ­ disse outro chefe tribal.
     ­ Porque meus olhos ainda não se acostumaram com o  deserto ­ respondeu
o rapaz. ­  E  eu posso  ver  coisas  que  os  olhos habituados  demais  não
conseguem mais ver.
     "É porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas não falou
nada, porque os árabes não acreditam nestas coisas.
     ­  O  Oásis  é um  terreno neutro. Ninguém  ataca um  Oásis  ­ disse um
terceiro chefe.
     ­ Eu conto apenas o que vi. Se não quiserem acreditar, não façam nada.
     Um completo  silêncio  abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto árabe que o rapaz  não
entendia,  mas  quando ele  fez  menção  de  ir embora, um guarda disse para
ficar.  O  rapaz começou a sentir  medo; os sinais diziam que  havia  alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
     De  repente,  o  velho  que estava  no  centro  deu  um  sorriso  quase
imperceptível, e o rapaz  tranqüilizou-se.  O velho não havia participado da
discussão, e não  dissera uma  palavra  até aquele momento.  Mas o rapaz  já
estava acostumado com a  Linguagem do Mundo,  e pode sentir uma vibração  de
Paz cruzando a tenda de ponta  a ponta. Sua  intuição dizia que havia  agido
corretamente em vir.


     A  discussão  acabou. Ficaram em  silêncio  por algum tempo,  ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio  e
distante.
     ­  Há dois mil anos,  numa terra distante, jogaram num  poço e venderam
como  escravo um homem que  acreditava em sonhos ­ disse o  velho.  ­ Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram  para o Egito. E todos nós sabemos que,
quem acredita em sonhos, também sabe interpretá-los.
     "Embora nem sempre consiga realizá-los", pensou  o  rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
     ­  Por causa dos sonhos do faraó com vacas magras e  gordas, este homem
livrou o Egito da fome.  Seu nome era José.  Era também um  estrangeiro numa
terra estrangeira, como você, e devia ter mais ou menos a sua idade.
     O silêncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
     ­ Sempre seguimos a Tradição. A Tradição salvou o Egito da fome naquela
época, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradição ensina  como os homens
devem atravessar o deserto e  casar suas filhas. A Tradição diz que um Oásis
é um terreno neutro, porque ambos os lados tem Oásis, e são vulneráveis.
     Ninguém disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
     ­ Mas a Tradição diz também para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
     O velho fez um  sinal e todos os árabes se levantaram. A reunião estava
para terminar. Os narguilés foram  apagados, e  os guardas  se  colocaram em
posição de sentido. O rapaz preparou-se para sair,  mas o  velho falou ainda
mais uma vez:
     ­ Amanhã  nós vamos romper um acordo que diz que ninguém no  oásis pode
portar  armas. Durante o dia inteiro  aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer  no  horizonte,  os  homens  me devolverão as armas.  Para  cada  dez
inimigos mortos, você receberá uma moeda de ouro.
     "Entretanto, as armas não podem sair  do seu lugar sem experimentarem a
batalha. São caprichosas  como o deserto,  e se as acostumamos com  isto, da
próxima vez podem  ter preguiça de disparar.  Se nenhuma  delas  tiver  sido
utilizada amanhã, pelo menos uma será usada em você."




     O oásis estava  iluminado  apenas pela  lua  cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada até sua tenda, e ele começou a andar.
     Estava  assustado  com  tudo que havia  acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do  Mundo, e o preço  por  acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia  em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua  Lenda  Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhã era
tão bom  como  morrer em  qualquer outro  dia.  Todo dia  era feito para ser
vivido  ou  para  abandonar  o  mundo. Tudo dependia apenas de  uma palavra:
"Maktub".
     Caminhou em silêncio. Não estava arrependido. Se morresse amanhã, seria
porque Deus  não  estava com  vontade de mudar o  futuro.  Mas teria morrido
depois  de  haver cruzado  o  estreito, trabalhado em uma  loja de cristais,
conhecido  o  silêncio  do  deserto  e  os olhos  de  Fátima.  Tinha  vivido
intensamente cada um dos seus dias,  desde que havia saído de casa, há tanto
tempo atrás. Se morresse amanhã, seus  olhos teriam visto  muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
     De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que não conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu  a lua. Na sua frente, um enorme  cavalo branco empinou  soltando  um
relincho aterrador.
     O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu  um pavor que jamais havia sentido  antes.  Em  cima do cavalo
estava  um  cavaleiro todo  vestido  de  negro,  com um falcão em seu  ombro
esquerdo. Usava um turbante e um lenço que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos  de fora. Parecia  o mensageiro do deserto, mas sua presença
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
     O  estranho  cavaleiro puxou a enorme espada curva  que trazia presa  à
sela. O aço brilhou com a luz da lua.
     ­ Quem ousou ler o vôo  dos gaviões?  ­ perguntou com uma voz tão forte
que pareceu ecoar entre as cinqüenta mil tamareiras do Al-fayoum.
     ­  Eu ousei  ­ disse o  rapaz.  Lembrou-se imediatamente da  imagem  de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco  com  os infiéis sob as patas.  Era
exatamente assim. Só que agora a situação estava invertida.
     ­ Eu  ousei ­ repetiu  o rapaz, e abaixou a cabeça para receber o golpe
da espada. ­ Muitas vidas serão salvas, porque vocês não contavam com a Alma
do Mundo.
     A espada, porém,  não  desceu rápido.  A mão do  estranho foi abaixando
lentamente, até  que a ponta  da lâmina  tocou na testa  do  rapaz. Era  tão
afiada que saiu uma gota de sangue.
     O cavaleiro estava  completamente imóvel. O rapaz também. Não pensou um
minuto  sequer em fugir. Dentro  do seu coração,  uma estranha alegria tomou
conta dele: ia  morrer por  sua Lenda Pessoal. E  por Fátima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim.  Ali  estava  o  Inimigo,  e por  causa  disto  ele  não
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui  a
pouco ele estaria  fazendo parte dela. E amanhã  o Inimigo faria  parte dela
também.
     O estranho, porém, apenas mantinha a espada em sua testa.
     ­ Por que você leu o vôo dos pássaros?
     ­  Li apenas  o que os  pássaros queriam contar. Eles  querem  salvar o
oásis, e vocês morrerão. O oásis tem mais homens que vocês.
     A espada continuava em sua testa.


     ­ Quem é você para mudar o destino de Allah?
     ­ Allah fez os exércitos, e fez também os  pássaros. Allah me mostrou a
linguagem dos pássaros. Tudo foi escrito  pela mesma  Mão,  ­ disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
     O estranho  finalmente retirou a  espada  da  testa. O rapaz  sentiu um
certo alívio. Mas não podia fugir.
     ­ Cuidado com  as adivinhações ­ disse  o estranho. ­  Quando as coisas
estão escritas, não há como evitá-las.
     ­  Apenas vi  um exército ­ disse o rapaz. ­ Não  vi o resultado de uma
batalha.
     O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a  espada  na
sua mão.
     ­ O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
     ­ Busco minha Lenda Pessoal. Algo que você não entenderá nunca.
     O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcão no seu  ombro deu um
grito estranho. O rapaz começou a relaxar.
     ­ Precisava testar sua coragem ­ disse o estranho. ­ A coragem é  o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
     O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
     ­  É preciso  não  relaxar  nunca, mesmo  tendo  chegado  tão  longe  ­
continuou ele.  ­ É preciso amar o deserto, mas jamais confiar  inteiramente
nele. Porque o deserto é uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
     Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
     ­ Se os guerreiros chegarem, e sua cabeça ainda estiver sobre o pescoço
depois que o sol morrer, me procure ­ disse o estranho.
     A mesma mão que havia segurado a espada, empunhou  um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
     ­ Onde você mora? ­ gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
     A mão com chicote apontou em direção ao sul.
     O rapaz tinha encontrado o Alquimista.






     Na manhã seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que  o  sol chegasse ao topo do céu, quinhentos  guerreiros
apareceram no horizonte.  Os cavaleiros  entraram no oásis pela parte norte;
parecia uma expedição de paz,  mas haviam  armas  escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram  perto da  grande tenda  que  ficava  no centro  de
Al-Fayoum, puxaram as  cimitarras  e as  espingardas. E  atacaram uma  tenda
vazia.
     Os homens do oásis cercaram  os  cavaleiros do  deserto.  Em meia  hora
haviam  quatrocentos  e noventa  e  nove  corpos  espalhados  pelo chão.  As
crianças estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e não viram nada.
As  mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e também  não viram  nada.
Não fosse pelos corpos espalhados, o oásis parecia viver um dia normal.
     Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalhão. De tarde ele
foi conduzido diante dos  chefes  tribais,  que lhe perguntaram porque havia
rompido a Tradição. O comandante  disse que seus  homens estavam  com fome e
sede,  exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um oásis
para poder recomeçar a luta.
     O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a Tradição jamais
pode ser rompida. A  única coisa  que  muda no  deserto são as dunas, quando
sopra o vento.
     Depois condenou o comandante a uma  morte sem honra. Ao invés do aço ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado  numa  tamareira também morta. Seu corpo
balançou com o vento do deserto.
     O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinqüenta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a história de José no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do Oásis.






     Quando  o sol se pôs por completo, e as primeiras estrelas começaram  a
aparecer (não brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em  direção  ao  sul. Havia apenas  uma tenda,  e alguns árabes que passavam
diziam que  o  lugar  era  cheio de djins.  Mas o rapaz sentou-se e  esperou
durante muito tempo.
     O Alquimista apareceu quando a lua  já estava alto no céu.  Trazia dois
gaviões mortos no ombro.
     ­ Aqui estou ­ disse o rapaz.
     ­ Não devia  estar ­ respondeu o Alquimista. ­ Ou sua Lenda Pessoal era
chegar até aqui?
     ­ Existe uma guerra entre os clãs. Não é possível cruzar o deserto.
     O Alquimista  desceu do seu cavalo,  e fez um sinal  para que  o  rapaz
entrasse com  ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as  outras que havia
conhecido no oásis ­ exceto a grande  tenda central,  que tinha o  luxo  dos
contos de fada. ­ Ele  procurou os aparelhos  e fornos de alquimia, mas  não
encontrou  nada. Havia apenas  uns poucos  livros empilhados,  um fogão para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
     ­ Sente-se, que vou preparar um chá  ­ disse o Alquimista.  E comeremos
juntos estes gaviões.
     O rapaz  suspeitou  que  eram os mesmos pássaros que havia visto no dia
anterior, mas  não disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um  delicioso cheiro de carne  enchia a tenda. Era melhor que o perfume  dos
narguilés.
     ­ Por que quis me ver? ­ disse o rapaz.
     ­ Por causa dos sinais ­ respondeu o Alquimista ­ O vento me contou que
você viria. E que ia precisar de ajuda.
     ­  Não sou eu. É o  outro estrangeiro, o  Inglês.  Ele  é que  o estava
buscando.
     ­  Ele tem que encontrar outras coisas antes  de me encontrar. Mas está
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
     ­ E eu?
     ­ Quando se quer uma coisa,  todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga  realizar seu  sonho ­ disse o  Alquimista, repetindo as palavras do
velho  rei.  O  rapaz entendeu.  Outro  homem estava  no seu  caminho,  para
conduzi-lo até sua Lenda Pessoal.
     ­ Então você vai me ensinar?
     ­ Não. Você já sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
direção ao seu tesouro.
     ­ Existe uma guerra entre os clãs. ­ repetiu o rapaz.
     ­ Eu conheço o deserto.
     ­  Já encontrei meu tesouro. Tenho um camelo,  o dinheiro  das lojas de
cristais,  e  cinqüenta moedas  de ouro.  Posso  ser um homem rico  na minha
terra.
     ­ Mas nada disto está perto das Pirâmides ­ disse o Alquimista.
     ­ Tenho Fátima. É um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
     ­ Também ela não está perto das Pirâmides.
     Comeram os  gaviões  em  silêncio. O  Alquimista  abriu  uma  garrafa e
derramou um  líquido vermelho  no copo do rapaz. Era vinho, um dos  melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.


     ­ O  mal não é  o que entra na boca do  homem ­ disse o Alquimista. ­ O
mal é o que sai dela.
     O rapaz começou  a sentir-se alegre com  o vinho. Mas o  Alquimista lhe
inspirava  medo. Sentaram-se do lado de fora da  tenda, olhando o  brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
     ­ Beba e se distraia um pouco ­ disse o Alquimista, notando que o rapaz
começava a ficar cada vez mais  alegre.  ­ Repouse como um guerreiro  sempre
repousa antes do combate. Mas não esqueça que o seu coração está onde está o
seu tesouro.  E que  seu tesouro precisa ser encontrado, para  que tudo isto
que você descobriu no caminho possa fazer sentido.
     "Amanhã  venda   seu  camelo  e  compre  um   cavalo.  Os  camelos  são
traiçoeiros: andam  milhares de passos, e não dão qualquer sinal de cansaço.
De repente, porém, ajoelham e morrem. Os cavalos vão se cansando aos poucos.
E  você poderá saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a época em que vão
morrer".


     Na  noite  seguinte  o  rapaz  apareceu  com  um  cavalo  na  tenda  do
Alquimista.  Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falcão no ombro esquerdo.
     ­ Mostre-me  a  vida no  deserto  ­ disse o  Alquimista. ­ Só quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
     Começaram a caminhar pelas areias, com a lua  ainda brilhando sobre  os
dois. "Não sei se vou conseguir encontrar vida  no deserto", pensou o rapaz.
"Não conheço ainda o deserto".
     Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gaviões no  céu; entretanto,
tudo era silêncio e vento.
     ­  Não consigo encontrar  vida no  deserto ­ disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas não consigo encontrá-la.
     ­ A vida atrai a vida ­ respondeu o Alquimista.
     E  o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as rédeas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e  areia. O Alquimista seguia  em silêncio, e o
cavalo do  rapaz  andou  por quase meia-hora.  Já  não  podiam mais  ver  as
tamareiras do oásis, apenas  a lua gigantesca no céu, e as  rochas brilhando
com a cor  prata. De  repente, num lugar  onde  jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
     ­ Aqui existe vida ­ respondeu o rapaz ao  Alquimista. ­ Não conheço  a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
     Desmontaram.  O Alquimista não disse nada.  Começou a olhar  as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou,  e abaixou-se com  todo  cuidado.
Havia um buraco no chão, entre as pedras;  o Alquimista enfiou a mão  dentro
do buraco,  e depois enfiou o  braço até o ombro.  Alguma coisa se  mexeu lá
dentro, e os olhos do Alquimista ­ ele só podia ver os olhos ­ se encolherem
de esforço e tensão.  O  braço  parecia  lutar com  o que estava  dentro  do
buraco. Mas num salto que  assustou o rapaz, o Alquimista retirou o braço  e
ficou imediatamente de pé. Sua mão trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
     O rapaz também  deu um salto, só que  para trás. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo  ruídos e silvos que feriam o silêncio do  deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.


     "Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a mão no buraco, e  já devia  ter  sido mordido.  Seu rosto, porém,
estava tranqüilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o Inglês.
     Já devia saber como lidar com cobras no deserto.
     O  rapaz viu quando seu companheiro  foi  até o cavalo e puxou  a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, traçou um círculo no chão  e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
     ­ Pode ficar tranqüilo ­ disse o Alquimista. ­ Ela não vai sair dali. E
você descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
     ­ Por que isto era tão importante?
     ­ Porque as Pirâmides estão cercadas de deserto.
     O rapaz não queria ouvir falar nas Pirâmides. Seu coração estava pesado
e  triste, desde a  noite anterior. Porque seguir em busca  do  seu tesouro,
significava ter que abandonar Fátima.
     ­ Vou guiá-lo pelo deserto ­ falou o Alquimista.
     ­ Quero ficar no  oásis ­ respondeu  o rapaz. ­  Já encontrei Fátima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
     ­ Fátima é uma mulher do  deserto ­ disse  o Alquimista. ­ Sabe  que os
homens devem  partir,  para poderem  voltar. Ela  já  encontrou seu tesouro:
você. Agora espera que você encontre o que busca.
     ­ E se eu resolver ficar?
     ­ Será o Conselheiro do Oásis. Tem  ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e  muitos camelos. Vai  casar-se com  Fátima  e  viverão  felizes  o
primeiro  ano.  Aprenderá  a  amar  o  deserto e vai  conhecer cada uma  das
cinqüenta mil tamareiras. Perceberá  como  elas  crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E irá  cada vez entender mais os sinais, porque o deserto é
um mestre melhor que todos os mestres.
     "No segundo  ano  você  se lembrará que existe um  tesouro.  Os  sinais
começarão  a falar insistentemente  sobre  isto,  e você tentará ignorá-los.
Usará  seu  conhecimento  apenas  para  o  bem-estar  do  oásis  e dos  seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecerão por isto.  Os seus camelos lhe
trarão riqueza e poder.
     "No terceiro ano os sinais continuarão a falar sobre seu  tesouro e sua
Lenda Pessoal. Você vai ficar noites  e noites andando pelo oásis, e  Fátima
será uma mulher triste, porque fez  com  que seu caminho fosse interrompido.
Mas você lhe dará amor, e será correspondido.  Você  vai se lembrar  que ela
jamais  pediu que ficasse,  porque uma mulher do  deserto  sabe  esperar seu
homem. Por isso não vai culpá-la. Mas  vai andar muitas  noites pelas areias
do  deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse  ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por Fátima. Porque o que o manteve no
oásis  foi seu próprio medo  de não voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicarão que seu tesouro está enterrado para sempre.
     No quarto ano, os  sinais o abandonarão, porque você não quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais irão entender isto,  e você será destituído do Conselho. A
esta  altura   será  um  rico  comerciante,  com  muitos  camelos  e  muitas
mercadorias. Mas passará o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o  deserto, sabendo que não cumpriu sua  Lenda  Pessoal, e que agora é tarde
demais para isto.
     "Sem jamais compreender que o Amor nunca impede  um homem de seguir sua
Lenda  Pessoal. Quando isto  acontece, é  porque não era o verdadeiro  Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".


     O Alquimista desfez o círculo  no  chão, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz  lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
à Meca, e o Inglês que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto  um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
     Montaram  em  seus  cavalos, e  desta vez  foi  o  rapaz  que seguiu  o
Alquimista. O vento trazia os ruídos do oásis,  e  ele tentava identificar a
voz de Fátima. Naquele dia não tinha ido ao poço por causa da batalha.
     Mas esta  noite,  enquanto olhavam uma  cobra dentro de um  círculo,  o
estranho  cavaleiro  com  seu  falcão no ombro havia  falado  de  amor  e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
     ­  Vou  com  você  ­ disse o rapaz.  E  imediatamente sentiu paz no seu
coração.
     ­  Partimos  amanhã antes que  o sol nasça ­ foi  a única  resposta  do
Alquimista.




     O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou  um  dos  rapazes que  dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava Fátima. Saíram juntos, e foram até lá. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
     Depois pediu  que descobrisse onde Fátima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem árabe  fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
     ­ Agora deixe-nos  a  sós ­ disse o rapaz ao jovem  árabe, que voltou à
sua tenda para dormir, orgulhoso  de haver ajudado o Conselheiro do Oásis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
     Fátima  apareceu na  porta da tenda. Os dois saíram para andar entre as
tamareiras.  O rapaz sabia  que era contra a  Tradição,  mas  isto não tinha
nenhuma importância agora.
     ­ Vou  partir  ­ disse. E quero  que saiba  que  vou voltar.  Eu te amo
porque...
     ­ Não  diga nada ­ interrompeu Fátima. ­ Ama-se porque  se  ama. Não há
qualquer razão para amar.
     Mas o rapaz continuou:
     ­ Eu  te amo porque tive  um  sonho,  encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei  o deserto,  os clãs declararam guerra,  e estive num poço para saber
onde morava um Alquimista. Eu te  amo  porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse até você.
     ­ Os  dois  se  abraçaram. Era a primeira  vez que um  corpo tocava  no
outro.
     ­ Voltarei ­ repetiu o rapaz.
     ­ Antes  eu olhava o deserto com desejo ­  disse Fátima. Agora será com
esperança.  Meu pai  um  dia partiu,  mas  voltou para minha mãe, e continua
voltando sempre.
     E  não disseram mais nada.  Andaram um pouco entre  as  tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
     ­ Voltarei como seu pai voltou para a sua mãe ­ disse.
     Reparou que os olhos de Fátima estavam cheios d'água.
     ­ Você chora?


     ­  Sou uma mulher  do  deserto ­ disse  ela, escondendo o  rosto. ­ Mas
acima de tudo, sou uma mulher.

     Fátima  entrou na tenda. Daqui a pouco o  sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela  ia sair  e fazer aquilo que havia feito durante  tantos anos;
mas  tudo  havia mudado. O rapaz já não  estava mais no oásis, e o oásis não
teria mais o significado que  tinha até pouco tempo antes. Não seria mais  o
lugar  com cinqüenta mil  tamareiras e trezentos  poços, onde os  peregrinos
chegavam contentes  depois  de  uma longa  viagem.  O oásis, daquele dia  em
diante, seria um lugar vazio para ela.
     A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o  rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo  vento,  na esperança de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como  uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca  de sonhos e
tesouros. A partir  daquele dia,  o  deserto  ia  ser apenas  uma  coisa:  a
esperança de sua volta.







     ­ Não  pense  no  que ficou para  trás  ­ disse  o  Alquimista,  quando
começaram a cavalgar pelas areias do deserto. ­ Tudo está gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecerá para sempre.
     ­ Os  homens  sonham mais com a volta do que  com a partida  ­ disse  o
rapaz, que já estava se acostumando de novo com o silêncio do deserto.
     ­ Se o que você encontrou é feito de matéria pura, jamais apodrecerá. E
você poderá voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a  explosão
de uma estrela, então não  vai encontrar nada  quando voltar. Mas terá visto
uma explosão de luz. E só isto já valeu a pena.
     O  homem  falava  em linguagem de  alquimia.  Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo à Fátima.
     Era difícil não pensar no  que havia ficado  para trás. O  deserto, com
sua paisagem  quase sempre igual,  costumava  encher-se  de sonhos. O  rapaz
ainda via as tamareiras, os poços,  e  o rosto da mulher amada. Via o Inglês
com seu laboratório, e o cameleiro que era um mestre e não sabia. "Talvez  o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
     O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falcão nos ombros. O falcão
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele saía do ombro  do
Alquimista e  voava em busca de alimento. No  primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois pássaros.
     De noite, estendiam seus cobertores e não acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias,  e foram ficando escuras à medida que a lua começou a
diminuir no céu. Durante uma semana andaram em silêncio,  conversando apenas
sobre as precauções  necessárias  para evitar os  combates entre  os clãs. A
guerra continuava,  e o vento às vezes trazia o cheiro adocicado  de sangue.
Alguma batalha havia  sido travada por perto, e o vento  recordava ao  rapaz
que havia  a  Linguagem  dos Sinais,  sempre pronta para mostrar o  que seus
olhos não conseguiam ver.
     Quando completaram sete dias de viagem,  o  Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que  de costume. O falcão saiu  em busca de caça, e ele tirou o
cantil de água e ofereceu ao rapaz.
     ­ Você agora está quase no final da viagem ­ disse o Alquimista. ­ Meus
parabéns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
     ­ E você está me guiando em silêncio ­ disse o rapaz. ­ Pensei  que  ia
me ensinar  aquilo que sabe. Faz algum  tempo  que  estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas não consegui aprender nada.
     ­  Só  existe  uma maneira de aprender  ­  respondeu o Alquimista  ­  É
através da ação.  Tudo que você precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
     O rapaz quis  saber o que era, mas o Alquimista  manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falcão.
     ­ Por que o chamam de Alquimista?
     ­ Porque sou.


     ­ E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram  ouro
e não conseguiram?
     ­  Buscavam  apenas  ouro  ­  respondeu seu companheiro.  ­ Buscavam  o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a própria Lenda.
     ­ O que me falta saber? ­ insistiu o rapaz.
     Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falcão retornou  com a  comida. Cavaram  um  buraco e  acenderam a  fogueira
dentro dele, para que ninguém pudesse ver a luz das chamas.
     ­  Sou um Alquimista porque  sou  um Alquimista ­  disse ele,  enquanto
preparavam a  comida. ­ Aprendi a ciência de  meus avós, que  aprenderam  de
seus avós, e assim até a criação do  mundo. Naquela época, toda a ciência da
Grande  Obra  podia ser  escrita numa simples esmeralda.  Mas os  homens não
deram importância  às coisas  simples,  e  começaram  a  escrever  tratados,
interpretações, e estudos filosóficos.  Começaram também a dizer  que sabiam
melhor o caminho que os outros.
     "Mas a Táboa da Esmeralda continua viva até hoje".
     ­ O que estava escrito na Táboa da Esmeralda? ­ quis saber o rapaz.
     O  Alquimista começou a desenhar  na areia, e  não demorou mais  do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
praça onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
     ­  Isto  estava  escrito na Táboa  da  Esmeralda ­ disse o  Alquimista,
quando acabou de escrever.
     O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
     ­  É um  código  ­  disse o rapaz, um pouco decepcionado com a Táboa da
Esmeralda. ­ Parece com os livros do Inglês.
     ­ Não ­ respondeu  o Alquimista. ­ É como  o vôo dos  gaviões; não deve
ser compreendida  simplesmente  pela  razão.  A Táboa  da  Esmeralda  é  uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
     "Os sábios entenderam que este mundo natural é apenas uma imagem e  uma
cópia do Paraíso.  A simples existência  deste  mundo é  a garantia  de  que
existe um mundo mais perfeito  que ele. Deus o criou  para  que, através das
coisas   visíveis,   os   homens  pudessem   compreender  seus  ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto é que eu chamo de Ação".
     ­ Devo entender a Táboa da Esmeralda? ­ perguntou o rapaz.
     ­ "Talvez, se você estivesse num laboratório de Alquimia, agora seria o
momento  certo  para  estudar  a  melhor  maneira  de  entender  a Táboa  da
Esmeralda. Entretanto, você está no  Deserto. Então mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender  o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da  terra. Você  nem  precisa  de entender o  deserto: basta  contemplar  um
simples grão de areia, e verá nele todas as maravilhas da Criação".
     ­ Como faço para mergulhar no deserto?
     ­ Escute seu coração.  Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornará para ela.


     Andaram  em silêncio mais dois  dias. O  Alquimista  estava muito  mais
cauteloso,  porque se aproximavam da zona  de combates  mais violentos. E  o
rapaz procurava escutar seu coração.


     Era  um  coração difícil; antes  estava  acostumado a  partir sempre, e
agora queria chegar a  todo custo. Às vezes, seu coração ficava muitas horas
contando histórias de saudades, outras vezes se  emocionava com  o nascer do
sol  no  deserto, e fazia  o  rapaz chorar escondido. O  coração  batia mais
rápido quando falava para  o rapaz sobre o tesouro  e  ficava mais  vagaroso
quando os  olhos  do  rapaz se perdiam no horizonte sem fim do  deserto. Mas
nunca estava em silêncio, mesmo que  o  rapaz não trocasse uma palavra com o
Alquimista.
     ­  Por  que  temos  que escutar  o coração? ­  perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
     ­ Porque, onde ele estiver, é onde estará o seu tesouro.
     ­  Meu coração é agitado ­ disse o  rapaz. ­ Tem sonhos, se emociona, e
está apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e não me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
     ­ É bom. Seu  coração  está vivo.  Continue a  ouvir o que ele tem para
dizer.
     Nos três dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no  horizonte.  O coração do rapaz começou a falar sobre o
medo.  Contava para  o rapaz histórias que  tinha ouvido da  Alma  do Mundo,
histórias  de  homens  que  foram em  busca  de  seus  tesouros  e jamais  o
encontraram. Às vezes assustava o rapaz com o pensamento de que  poderia não
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz  que já  estava satisfeito,  que já  havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
     ­ Meu coração é traiçoeiro ­  disse o rapaz ao Alquimista,  quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. ­ Não quer que eu continue.
     ­ Isto é bom ­  respondeu o Alquimista.  ­ Prova que  seu  coração está
vivo.  É  natural  ter  medo  de trocar por um  sonho  tudo aquilo que já se
conseguiu.
     ­ Então, para que devo escutar meu coração?
     ­  Porque você não vai  conseguir jamais  mantê-lo calado. E mesmo  que
finja não escutar o que ele diz, ele estará  dentro do  seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
     ­ Mesmo que ele seja traiçoeiro?
     ­  A traição é  o golpe que  você não espera.  Se você conhecer bem seu
coração, ele  jamais conseguirá isto. Porque  você conhecerá  seus  sonhos e
seus desejos, e saberá lidar com eles.
     "Ninguém consegue fugir do seu coração. Por isso é melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que você não espera".

     O  rapaz  continuou  a  escutar  seu coração, enquanto caminhavam  pelo
deserto.  Passou  a  conhecer suas  artimanhas  e  seus truques,  e passou a
aceitá-lo como  era.  Então o rapaz  deixou de ter medo,  e  deixou  de  ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu  coração  lhe disse  que  estava
contente. "Mesmo  que eu reclame um pouco", dizia seu coração, "é porque sou
um coração de homem, e os corações de homens são assim. Têm medo de realizar
seus  maiores  sonhos,   porque  acham  que  não  o  merecem,  ou   não  vão
consegui-los. Nós, os corações,  morremos de medo só de pensar em amores que
partiram para  sempre, em  momentos que  poderiam  ter sido  bons e que  não
foram, em tesouros que  poderiam ter sido descobertos e ficaram  para sempre
escondidos  na  areia. Porque  quando  isto  acontece,  terminamos  sofrendo
muito".


     ­ Meu coração tem medo de sofrer ­ disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o céu sem lua.
     ­  Diga  para  ele  que  o  medo de sofrer  é  pior  do  que  o próprio
sofrimento. E que nenhum coração  jamais sofreu quando foi em busca  de seus
sonhos, porque cada momento de busca é um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
     "Cada momento de busca é um momento de encontro", disse o rapaz  ao seu
coração. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu  sabia que cada hora fazia parte  do sonho  de encontrar. Enquanto
procurei  este meu  tesouro, descobri  no  caminho  coisas  que jamais teria
sonhado  encontrar,   se  não  tivesse  tido  a  coragem  de  tentar  coisas
impossíveis aos pastores".
     Então seu coração ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranqüilo, e  quando acordou,  o seu  coração começou a lhe contar as
coisas  da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus  dentro de  si. E que a felicidade  poderia  ser encontrada num simples
grão de areia do deserto, como  o Alquimista havia falado. Porque um grão de
areia  é  um momento da Criação, e o Universo demorou milhares de milhões de
anos para  criá-lo. "Cada  homem na  face da Terra tem  um tesouro que  está
esperando por  ele",  disse seu coração.  Nós, os corações, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os  homens já não querem mais encontrá-los. Só
falamos dele  para as crianças. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em  direção ao seu  destino.  Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes  está traçado,  e  que é o caminho da Lenda Pessoal, e  da  felicidade.
Acham o  mundo uma coisa ameaçadora ­ e por causa disto o mundo se torna uma
coisa ameaçadora.
     "Então nós, os corações, vamos falando cada vez mais baixo, mas não nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras  não  sejam  ouvidas: não
queremos que os homens sofram porque não seguiram seus corações".
     ­  Por que  os corações não  contam  aos  homens  que  devem  continuar
seguindo seus sonhos? ­ perguntou o rapaz ao Alquimista.
     ­  Porque, neste caso, o coração  é o que sofre mais. E os corações não
gostam de sofrer.
     O rapaz entendeu seu coração a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu  que, quando estivesse  longe de  seus  sonhos,  o coração
apertasse no peito e desse o sinal  de alarme. O rapaz jurou que sempre  que
escutasse este sinal, também o seguiria.
     Naquela noite  conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o coração do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
     ­ O que faço agora? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Siga em direção  às  Pirâmides ­ disse  o Alquimista.  ­  E  continue
atento aos sinais. Seu coração já é capaz de lhe mostrar o tesouro.
     ­ Era isto que estava faltando saber?
     ­  Não. ­  respondeu o Alquimista.  ­  O que  está  faltando saber é  o
seguinte:
     "Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela  faz isto não  porque seja
má, mas  para que  possamos, junto com  o  nosso sonho, conquistar também as
lições  que aprendemos seguindo em direção a ele. É o momento em que a maior
parte das pessoas desiste.  É o  que chamamos,  em linguagem  do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras já apareceram no horizonte' ".


     "Uma busca começa sempre  com a Sorte de Principiante. E termina sempre
com a Prova do Conquistador".
     O rapaz lembrou-se de um velho provérbio de sua terra. Dizia que a hora
mais escura era a que vinha antes do sol nascer.




     No  dia seguinte apareceu o  primeiro sinal concreto  de  perigo.  Três
guerreiros  se  aproximaram e perguntaram o que os dois estavam  fazendo por
ali.
     ­ Vim caçar com o meu falcão ­ respondeu o Alquimista.
     ­  Precisamos revistá-los  para ver se não  levam armas ­ disse  um dos
guerreiros.
     O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo.
     ­ Para quê tanto dinheiro? ­ perguntou o guerreiro, quando viu  a bolsa
do rapaz.
     ­ Para chegar ao Egito ­ disse ele.
     O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco
de cristal cheio de líquido,  e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o
ovo de uma galinha.
     ­ Que são estas coisas? ­ perguntou o guarda.
     ­ É  a Pedra Filosofal e  o Elixir  da Longa  Vida. É a grande obra dos
Alquimistas. Quem tomar este elixir  jamais ficará doente, e uma lasca desta
pedra transforma qualquer metal em ouro.
     Os guardas riram pra valer,  e o Alquimista riu com eles. Tinham achado
a  resposta muito engraçada,  e os deixaram partir sem maiores contratempos,
com todos os seus pertences.
     ­  Você está louco? ­ perguntou o rapaz ao Alquimista, quando já haviam
se distanciado bastante. ­ Para que você fez isto?
     ­  Para  mostrar  a você  uma  simples  lei  do  mundo  ­  respondeu  o
Alquimista.  ­  Quando temos  os  grandes  tesouros  diante  de  nós,  nunca
percebemos. E sabe por quê? Porque os homens não acreditam em tesouros.
     Continuaram andando  pelo deserto. A cada dia que passava, o coração do
rapaz ia ficando mais silencioso. Já não queria saber das coisas passadas ou
das  coisas futuras; contentava-se em contemplar  também o deserto, e  beber
junto com o rapaz da  Alma do  Mundo. Ele e seu coração  tornaram-se grandes
amigos ­ um passou a ser incapaz de trair o outro.
     Quando o coração falava, era para dar estímulo e força ao rapaz, que às
vezes achava terrivelmente maçante os dias de silêncio. O coração contou-lhe
pela  primeira  vez  suas grandes qualidades:  sua coragem  ao abandonar  as
ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais.
     Contou-lhe também mais uma coisa,  que o rapaz nunca  havia notado:  os
perigos  que  passaram perto e que  ele nunca  tinha percebido.  Seu coração
disse que certa vez havia escondido  a pistola que ele havia roubado do pai,
pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que
o rapaz  havia passado mal em  pleno  campo,  vomitado, e depois dormido por
muito tempo: haviam  dois assaltantes mais adiante,  que  estavam planejando
roubar  suas  ovelhas,  e  assassiná-lo.  Mas  como  o  rapaz  não aparecia,
resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota.
     ­  Os  corações  sempre  ajudam  os  homens?  ­ perguntou  o  rapaz  ao
Alquimista.
     ­ Só os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas  ajudam muito  as crianças, os
bêbados, e os velhos.
     ­ Quer dizer então que não há perigo?


     ­ Quer dizer apenas que os corações se esforçam ao máximo ­ respondeu o
Alquimista.
     Certa tarde passaram  pelo acampamento de um dos clãs. Haviam árabes em
vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas  em todos os cantos. Os homens
fumavam narguilé  e  conversavam sobre  os combates. Ninguém  prestou  maior
atenção aos dois viajantes.
     ­ Não há qualquer perigo  ­ disse o rapaz, quando já tinham se afastado
um pouco do acampamento.
     O Alquimista ficou furioso.
     ­ Confie em seu coração ­ disse, mas não se esqueça de que você está no
deserto. Quando os homens estão em guerra, a Alma do Mundo  também sente  os
gritos de combate.  Ninguém deixa de sofrer as  conseqüências de  cada coisa
que se passa debaixo do sol.
     "Tudo é uma coisa única", pensou o rapaz.
     E  como  se  o deserto quisesse mostrar que  o velho Alquimista  estava
certo, dois cavaleiros surgiram por detrás dos viajantes.
     ­ Não podem seguir adiante ­ disse um deles. ­  Vocês estão nas  areias
onde os combates são travados.
     ­ Não vou muito longe ­ respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos
dos   guerreiros.  Eles  ficaram  quietos  por  alguns  minutos,  e   depois
concordaram com a viagem dos dois.
     O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.
     ­ Você dominou os guardas com o olhar ­ comentou ele.
     ­ Os olhos mostram a força da alma ­ respondeu o Alquimista.
     Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que,  no  meio da multidão
de soldados no  acampamento,  um deles  estava olhando fixo para os dois.  E
estava tão  distante,  que não dava sequer para ver  direito sua face. Mas o
rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles.
     Finalmente, quando começaram a cruzar  uma montanha que se estendia por
todo o horizonte,  o  Alquimista  disse que faltavam dois dias para chegarem
até às Pirâmides.
     ­ Se vamos nos separar logo ­ respondeu o rapaz ­ me ensine Alquimia.
     ­ Você já sabe. É penetrar na Alma do Mundo,  e descobrir o tesouro que
ela reservou para nós.
     ­ Não é isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro.
     O Alquimista respeitou  o silêncio do deserto,  e só respondeu ao rapaz
quando pararam para comer.
     ­ Tudo no Universo  evolui ­ disse ele. ­ E para os sábios, o ouro é  o
metal mais evoluído. Não pergunte porquê; não sei. Sei apenas que a Tradição
está sempre certa.
     "Os homens  é que  não interpretaram bem as  palavras dos sábios.  E ao
invés de símbolo de evolução, o ouro passou a ser o sinal das guerras.
     ­  As coisas falam  muitas linguagens  ­  disse o rapaz. ­ Vi quando  o
relincho de camelo  era  apenas um relincho, depois passou  a  ser  sinal de
perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho.
     Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo.
     ­  Conheci  verdadeiros  alquimistas  ­  continuou. ­ Se  trancavam  no
laboratório e tentavam evoluir como  o ouro; descobriam a  Pedra  Filosofal.
Porque  haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui também tudo que
está a sua volta.


     "Outros conseguiram  a pedra por acidente. Já tinham  o dom, suas almas
estavam  mais despertas  que  a das outras pessoas.  Mas  estes  não contam,
porque são raros.
     "Outros, enfim,  buscavam  apenas  o  ouro. Estes jamais descobriram  o
segredo.  Esqueceram-se de  que o chumbo, o  cobre,  o ferro, também têm sua
Lenda  Pessoal  para cumprir.  Quem interfere na Lenda  Pessoal  dos outros,
nunca descobrirá a sua".
     As  palavras do Alquimista soaram  como  uma maldição. Ele abaixou-se e
pegou uma concha no solo do deserto.
     ­ Isto um dia já foi um mar ­ disse.
     ­ Já tinha reparado ­  respondeu o rapaz. O  Alquimista pediu ao  rapaz
para colocar  a  concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes  quando
era criança, e escutou o barulho do mar.
     ­ O  mar  continua  dentro desta concha, porque é sua  Lenda Pessoal. E
jamais a abandonará, até que o deserto se cubra novamente de água.
     Depois montaram em seus  cavalos, e seguiram em direção às Pirâmides do
Egito.




     O sol tinha  começado a descer quando  o coração do  rapaz deu sinal de
perigo. Estavam no meio de  gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista,
mas  este  parecia  não  haver  notado  nada.  Cinco  minutos depois o rapaz
percebeu dois cavaleiros  a sua frente, as silhuetas cortadas contra  o sol.
Antes  que  pudesse  falar   com  o  Alquimista,   os  dois   cavaleiros  se
transformaram  em dez, depois em cem,  até  que as gigantescas dunas ficaram
cobertas deles.
     Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante.
Os rostos estavam cobertos por outro  véu azul,  deixando apenas os olhos de
fora.
     Mesmo distante,  os olhos mostravam a força de  suas almas. E  os olhos
falavam em morte.


     Levaram os dois para um acampamento  militar nas imediações. Um soldado
empurrou  o  rapaz  e o Alquimista para dentro de uma  tenda.  Era uma tenda
diferente das que havia conhecido no oásis; ali estava um comandante reunido
com seu estado-maior.
     ­ São os espiões ­ disse um dos homens.
     ­ Somos apenas viajantes ­ respondeu o Alquimista.
     ­  Vocês  foram vistos  no  acampamento  inimigo há três  dias atrás. E
conversaram com um dos guerreiros.
     ­ Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas ­ disse o
Alquimista. Não tenho informações de tropas, ou o movimento dos clãs. Apenas
guiava meu amigo até aqui.
     ­ Quem é seu amigo? perguntou o comandante.
     ­ Um Alquimista ­ disse o Alquimista. ­ Conhece os poderes da natureza.
E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordinária.
     O rapaz ouvia em silêncio. E com medo.
     ­ O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? ­ disse outro homem.


     ­ Trouxe dinheiro  para oferecer a seu  clã ­  respondeu o  Alquimista,
antes que o rapaz  dissesse qualquer palavra.  E  pegando  a bolsa do rapaz,
entregou as moedas de ouro ao general.
     O árabe aceitou em silêncio. Dava para comprar muitas armas.
     ­ O que é um Alquimista? ­ perguntou, finalmente.
     ­ Um homem que conhece a natureza  e o mundo. Se ele quisesse, destruía
este acampamento apenas com a força do vento.
     Os homens riram.  Estavam acostumados com a força da guerra,  e o vento
não detém um golpe mortal. Dentro do peito de cada um,  porém, seus corações
apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros.
     ­ Quero ver ­ disse o general.
     ­ Precisamos de  três  dias ­  respondeu o  Alquimista.  ­ E ele vai se
transformar em vento,  apenas  para mostrar a  força de seu  poder.  Se  não
conseguir,  nós lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela  honra de seu
clã.
     ­ Não pode me oferecer o que já é meu ­ disse, arrogante, o general.
     Mas concedeu os três dias aos viajantes.

     O rapaz  estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista
lhe segurou os braços.
     ­ Não  deixe  que  eles percebam seu medo ­ disse o Alquimista.  ­  São
homens corajosos, e desprezam os covardes.
     O rapaz,  porém,  estava sem voz.  Só conseguiu falar  depois de  algum
tempo,  enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. Não  havia necessidade
de prisão: os árabes apenas tiraram seus cavalos.  E mais  uma vez  o  mundo
mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim,
era agora uma muralha intransponível.
     ­ Você deu todo o meu tesouro! ­ disse o rapaz. ­ Tudo que eu ganhei em
toda a minha vida!
     ­ E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? ­ respondeu, o
Alquimista.  ­  Seu dinheiro o salvou por três dias. Poucas vezes o dinheiro
serve para adiar a morte.
     Mas o  rapaz estava apavorado  demais  para ouvir palavras sábias.  Não
sabia como transformar-se em vento. Não era um Alquimista.
     O Alquimista pediu chá a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do
rapaz.  Uma onda  de tranqüilidade  encheu seu corpo,  enquanto o Alquimista
dizia algumas palavras que ele não conseguia compreender.
     ­  Não se  entregue  ao  desespero ­  disse o  Alquimista,  com uma voz
estranhamente doce.  ­ Isto faz  com que você  não consiga conversar com seu
coração.
     ­ Mas eu não sei transformar-me em vento.
     ­  Quem vive  sua Lenda Pessoal, sabe tudo que  precisa  saber. Só  uma
coisa torna um sonho impossível: o medo de fracassar.
     ­ Não tenho medo de fracassar. Apenas não sei transformar-me em vento.
     ­ Pois terá que aprender. Sua vida depende disto.
     ­ E se eu não conseguir?
     ­ Vai morrer  enquanto vivia sua Lenda  Pessoal. É muito  melhor do que
morrer  como  milhões  de pessoas,  que jamais souberam que a  Lenda Pessoal
existia.


     "Entretanto, não se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas
fiquem mais sensíveis à vida."



     O  primeiro dia se passou. Houve uma grande  batalha  nas imediações, e
vários feridos foram  trazidos para o acampamento  militar. "Nada muda com a
morte",  pensava o rapaz. Os guerreiros  que morriam  eram  substituídos por
outros, e a vida continuava.
     ­ Poderias ter morrido  mais tarde,  meu amigo ­ disse  o guarda para o
corpo de um  companheiro  seu. ­ Poderias ter morrido quando chegasse a paz.
Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito.
     No  final do dia, o  rapaz foi procurar  o Alquimista. Estava levando o
falcão para o deserto.
     ­ Não sei transformar-me em vento ­ repetiu o rapaz.
     ­  Lembre-se  do  que eu lhe  disse:  de que o  mundo é  apenas a parte
visível  de  Deus. De  que  a  Alquimia é trazer  para  o plano  material  a
perfeição espiritual.
     ­ O que você faz?
     ­ Alimento meu falcão.
     ­ Se eu não conseguir transformar-me em vento, nós vamos morrer ­ disse
o rapaz. ­ Para que alimentar o falcão?
     ­ Quem vai morrer é você ­ disse o Alquimista.  ­ Eu sei transformar-me
em vento.




     No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do
acampamento. As sentinelas  o deixaram passar; já ouviram falar do bruxo que
se transformava em vento,  e não queriam chegar perto  dele. Além  disso,  o
deserto era uma grande e intransponível muralha.
     Ficou o resto da tarde  do  segundo dia olhando o deserto. Escutou  seu
coração. E o deserto escutou seu medo.
     Ambos falavam a mesma língua.




     No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes.
     ­ Vamos  ver o garoto  que se transforma em vento ­  disse o General ao
Alquimista.
     ­ Vamos ver ­ respondeu o Alquimista.
     O rapaz os conduziu até  o  lugar onde  havia estado no  dia  anterior.
Então pediu que todos se sentassem.
     ­ Vai demorar um pouco ­ disse o rapaz.
     ­ Não temos pressa ­ respondeu o General. ­ Somos homens do deserto.


     O rapaz  começou a olhar o horizonte  a sua frente. Haviam montanhas ao
longe, haviam dunas, rochas  e plantas rasteiras que insistiam em viver onde
a  sobrevivência  era  impossível.  Ali  estava  o deserto,  que  ele  havia
percorrido durante tantos meses,  e que, mesmo assim,  só conhecia uma parte
muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas,
guerras de clãs, e um oásis com cinqüenta mil tamareiras e trezentos poços.
     ­ O que  você  quer aqui  hoje? ­ perguntou  o deserto. ­  Já  não  nos
contemplamos o suficiente ontem?
     ­  Em algum ponto  você guarda a  pessoa que  eu amo ­ disse o rapaz. ­
Então, quando olho suas areias contemplo também a ela.  Quero voltar a ela e
preciso de sua ajuda para transformar-me em vento.
     ­ O que é o amor? ­ perguntou o deserto.
     ­ O amor  é quando o falcão voa sobre suas areias. Porque para ele você
é um campo verde, e ele nunca voltou sem caça. Ele conhece suas rochas, suas
dunas, e suas montanhas, e você é generoso com ele.
     ­ O  bico  do falcão tira pedaços de  mim ­ disse o deserto. ­  Durante
anos eu cultivo  sua caça, alimento  com a pouca água que tenho, mostro onde
está a comida. E um dia, desce o  falcão  do céu,  justamente quando  eu  ia
sentir o  carinho da  caça  sobre minhas areias. Ele carrega  aquilo que  eu
criei.
     ­ Mas foi para isto  que  você criou a caça ­ respondeu o rapaz. ­ Para
alimentar  o  falcão.  E  o  falcão alimentará  o  homem.  E  o homem  então
alimentará  um  dia  tuas  areias, de  onde a caça  tornará a  surgir. Assim
move-se o mundo.
     ­ É isto o amor?
     ­ É isto o amor. É o que faz a  caça transformar-se em falcão, o falcão
em  homem,  e  o homem  de  novo  em  deserto.  É  isto  que  faz  o  chumbo
transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra.
     ­ Não entendo suas palavras ­ disse o deserto.
     ­  Então  entenda  que  em algum  lugar de suas  areias, uma mulher  me
espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento.
     O deserto ficou em silêncio por alguns instantes.
     ­ Eu lhe dou minhas  areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho,
não posso fazer nada. Peça ajuda ao vento.

     Uma pequena brisa começou a soprar. Os comandantes olhavam o  rapaz  ao
longe, falando uma linguagem que eles não conheciam.


     O Alquimista sorria.

     O vento  chegou perto  do rapaz e  tocou seu  rosto. Havia escutado sua
conversa com  o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o
mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer.
     ­ Me ajude ­ disse  o rapaz ao vento. ­ Certo dia escutei em você a voz
da minha amada.
     ­ Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento?
     ­ Meu coração ­ respondeu o rapaz.
     O  vento tinha  muitos nomes. Ali ele  era chamado de siroco, porque os
árabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de água, onde habitavam
homens negros.  Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o  chamavam de
Levante,  porque acreditavam que trazia as areias do  deserto e os gritos de
guerra dos mouros.  Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os
homens pensassem  que o vento nascia  em Andaluzia. Mas o vento não vinha de
lugar nenhum,  e não ia para  lugar nenhum, e por isso era mais  forte que o
deserto. Um dia eles  poderiam plantar árvores no deserto, e até mesmo criar
ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento.
     ­ Você não  pode  ser  o  vento ­ disse o vento. ­ Somos  de  naturezas
diferentes.
     ­ Não é verdade ­ disse  o  rapaz.  ­  Conheci os segredos da Alquimia,
enquanto  vagava  o mundo com você. Tenho em mim os ventos,  os desertos, os
oceanos, as  estrelas, e tudo que foi  criado no Universo. Fomos feitos pela
mesma Mão,  e temos a mesma Alma. Quero ser como você, penetrar em todos  os
cantos, atravessar os mares,  tirar  a  areia que  cobre meu tesouro, trazer
para perto a voz de minha amada.
     ­  Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia ­ disse o vento. ­  Ele
falou  que cada  coisa  tem  sua  Lenda  Pessoal. As  pessoas não  podem  se
transformar em vento.
     ­  Me ensine a  ser vento por alguns instantes, ­ disse o rapaz. ­ Para
que  possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos  homens e dos
ventos.
     O  vento  era curioso, e aquilo  era uma  coisa  que ele  não conhecia.
Gostaria  de conversar sobre aquele  assunto, mas não sabia como transformar
homens em vento. E olha que ele  conhecia tanta coisa!  Construía  desertos,
afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias
de música e de ruídos estranhos. Achava que era  ilimitado, e no entanto ali
estava  um  rapaz dizendo que  ainda havia mais  coisas  que um vento  podia
fazer.
     ­ É isto que chamam de Amor ­ disse o rapaz, ao ver  que o vento estava
quase cedendo ao seu pedido. ­ Quando se ama é que se consegue ser  qualquer
coisa da Criação. Quando se ama não temos necessidade  nenhuma de entender o
que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nós, e os homens podem
se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, é claro.
     O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado  com o que o rapaz dizia.
Começou a soprar com mais  velocidade,  levantando as areias do deserto. Mas
finalmente  teve  que reconhecer  que,  mesmo  havendo  percorrido  o  mundo
inteiro, não sabia como transformar homens em ventos. E não conhecia o Amor.
     ­ Enquanto  passeava  pelo  mundo,  notei que muitas pessoas falavam de
amor olhando  para o céu ­ disse o  vento, furioso por  ter que aceitar suas
limitações. ­ Talvez seja melhor perguntar ao céu.


     ­ Então me ajude ­ disse o  rapaz. ­ Encha  este  lugar de poeira, para
que eu possa olhar o sol sem ficar cego.
     O  vento então soprou com  muita força, e o céu ficou  cheio de  areia,
deixando apenas um disco dourado no lugar do sol.



     No acampamento estava ficando difícil de enxergar. Os homens do deserto
já conheciam aquele vento.  Chamava-se Simum, e era  pior que uma tempestade
no mar ­ porque eles não conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas
começaram a ficar cobertas de areia.
     No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse:
     ­ Talvez  seja  melhor  pararmos  com isto.  Eles  já quase não  podiam
enxergar o rapaz.  Os rostos estavam cobertos pelos lenços azuis, e os olhos
agora significavam apenas espanto.
     ­ Vamos parar com isto ­ insistiu outro comandante.
     ­ Quero ver  a grandeza de Allah ­ disse com respeito  o general. Quero
ver como os homens se transformam em vento.
     Mas anotou mentalmente o nome  dos  dois homens que haviam  tido  medo.
Assim  que  o vento  parasse, ia destituí-los de  seus comandos,  porque  os
homens do deserto não sentem medo.




     O vento me disse  que você conhece o Amor ­ disse  o rapaz ao Sol. ­ Se
você conhece o Amor, conhece também a Alma do Mundo, que é feita de Amor.
     ­ Daqui de onde estou ­ disse o sol ­ posso ver a Alma do Mundo. Ela se
comunica com minha  alma, e  nós, juntos, fazemos as  plantas crescerem e as
ovelhas caminharem em busca de  sombra. Daqui  de onde estou ­ e estou muito
longe do mundo ­ aprendi a  amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco  mais
da Terra, tudo que  está nela morrerá, e a Alma do Mundo deixará de existir.
Então nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe  dou vida e calor,  e ela me
dá uma razão para viver.
     ­ Você conhece o Amor ­ disse o rapaz.
     ­ E conheço a Alma do  Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem
fim pelo Universo. Ela me fala  que seu maior problema é que até hoje, só os
minerais e os vegetais entenderam que tudo é uma coisa só.  E para isto, não
precisa que o ferro seja  igual ao cobre, e que o cobre seja igual  ao ouro.
Cada um cumpre sua função exata nesta coisa única, e tudo seria uma Sinfonia
de Paz  se a  Mão que escreveu  tudo  isto tivesse  parado no  quinto dia da
criação.
     "Mas houve um sexto dia", disse o Sol.
     ­  Você é  sábio  porque vê tudo à distância ­ respondeu o rapaz. ­ Mas
não conhece o  Amor. Se não houvesse um sexto dia da criação,  não haveria o
homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um
tem  sua Lenda Pessoal,  é  verdade, mas  um  dia  esta  Lenda  Pessoal será
cumprida. Então  é  preciso transformar-se  em algo  melhor, e  ter uma nova
Lenda Pessoal, até que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa só.


     O  sol  ficou pensativo  e resolveu  brilhar mais forte.  O vento,  que
estava gostando da  conversa, soprou também  mais forte, para que  o sol não
cegasse o rapaz.
     ­  Para isto  existe a  Alquimia ­ disse o rapaz. ­ Para que cada homem
busque seu tesouro, e o encontre, e depois  queira ser melhor do  que foi na
sua vida anterior. O  chumbo cumprirá seu papel até que o mundo não  precise
mais de chumbo; então ele terá que transformar-se em ouro.
     "Os Alquimistas fazem isto. Mostram  que, quando buscamos ser  melhores
do que somos, tudo em volta se torna melhor também".
     ­ E por que você diz que eu não conheço o Amor? ­ perguntou o Sol.
     ­ Porque o amor  não é  estar parado como o deserto, nem correr o mundo
como o vento, nem ver tudo  de longe,  como  você.  O  Amor  é a  força  que
transforma e melhora  a  Alma do Mundo.  Quando penetrei nela pela  primeira
vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas
as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixões. Somos nós que alimentamos
a  Alma do  Mundo, e  a  terra onde  vivemos será melhor ou pior,  se formos
melhores ou piores. Aí  é que entra  a força  do Amor, porque quando amamos,
sempre desejamos ser melhores do que somos.
     ­ O que você quer de mim? ­ perguntou o Sol.
     ­ Que me ajude a transformar-me em vento ­ respondeu o rapaz.
     ­ A Natureza me conhece como a mais sábia de todas as criaturas ­ disse
o Sol. ­ Mas não sei como transformá-lo em vento.
     ­ Com quem devo falar, então?
     Por  um  momento o  sol ficou  quieto. O  vento estava  ouvindo,  e  ia
espalhar  por todo  o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto,  não
tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo.
     ­ Converse com a Mão que escreveu tudo ­ disse o Sol.

     O vento gritou  de contentamento, e soprou com mais força do que nunca.
As tendas começaram a  ser arrancadas  da areia, e os animais soltaram-se de
suas rédeas. No rochedo, os homens se agarravam  uns  aos  outros  para  não
serem atirados longe.

     O rapaz se virou então para a Mão que Tudo Havia Escrito. E ao invés de
falar qualquer coisa, sentiu que o  Universo ficava  em silêncio, e ficou em
silêncio também.
     Uma força de Amor jorrou de seu coração, e o rapaz começou a rezar. Era
uma oração que  nunca tinha feito antes,  porque era uma oração sem palavras
ou  sem pedidos. Não estava agradecendo  pelas ovelhas haverem encontrado um
pasto,  nem implorando  para vender  mais cristais, nem  pedindo  para que a
mulher que havia encontrado estivesse esperando sua  volta. No silêncio  que
se seguiu, o  rapaz entendeu que o deserto, o vento, e o sol também buscavam
os sinais que aquela Mão havia escrito, e procuravam cumprir seus caminhos e
entender  o  que estava escrito  numa  simples esmeralda. Sabia que  aqueles
sinais  estavam espalhados na Terra e no Espaço,  e que em sua aparência não
tinham qualquer motivo ou significado, e que nem os desertos, nem os ventos,
nem os  sóis, e nem os homens sabiam porque tinham  sido criados. Mas aquela
Mão  tinha um motivo para tudo isto, e só ela era  capaz de operar milagres,
de  transformar  oceanos  em  desertos, e  homens  em  vento.  Porque só ela
entendia que um desígnio maior empurrava o Universo a um ponto onde  os seis
dias da criação se transformariam na Grande Obra.


     E o rapaz mergulhou na Alma do Mundo, e viu que a Alma do  Mundo  era a
parte da Alma  de Deus, e viu que a Alma de  Deus era a  sua própria alma. E
que podia, então, realizar milagres.




     O simum  soprou naquele  dia como jamais havia soprado.  Durante muitas
gerações os  árabes contaram entre  si  a  lenda  de um rapaz que  havia  se
transformado em vento, quase destruído um acampamento militar, e desafiado o
poder do mais importante general do deserto.
     Quando o simum parou de soprar, todos olharam para o lugar onde o rapaz
estava. Ele não estava mais lá; estava junto a um sentinela quase coberto de
areia, e que vigiava o outro lado do acampamento.
     Os homens estavam apavorados com a bruxaria. Só duas pessoas sorriam: o
Alquimista, porque tinha encontrado seu discípulo certo, e o General, porque
o discípulo tinha entendido a glória de Deus.
     No  dia seguinte, o general  despediu-se  do  rapaz e do  Alquimista, e
pediu que uma escolta os acompanhasse até onde os dois quisessem.




     Caminharam  o  dia  inteiro. Quando estava  entardecendo,  chegaram  em
frente a um mosteiro copta. O  Alquimista  dispensou a  escolta, e desceu de
seu cavalo.
     ­ Daqui para frente você vai sozinho ­ disse o Alquimista. ­ São apenas
três horas até as Pirâmides.
     ­ Obrigado ­ disse o rapaz. ­ Você me ensinou a Linguagem do Mundo.
     ­ Eu apenas recordei o que você já sabia.
     O Alquimista bateu na porta do mosteiro. Um monge todo vestido de preto
veio atender. Conversaram alguma coisa em copta, e o  alquimista convidou  o
rapaz para entrar.
     ­ Pedi que me emprestasse um pouco a cozinha ­ disse ele.
     Foram até a cozinha do mosteiro. O Alquimista acendeu o fogo, e o monge
trouxe  um pouco de chumbo,  que o Alquimista derreteu dentro de  um vaso de
ferro. Quando o chumbo tinha virado  líquido, o Alquimista tirou do seu saco
aquele estranho ovo de vidro amarelado. Raspou uma  camada do tamanho  de um
fio de cabelo, envolveu-o em cera, e atirou na panela com o chumbo.
     A  mistura ganhou uma cor vermelha, como o  sangue. O Alquimista  então
tirou  a panela do fogo e a  deixou esfriar. Enquanto isto, conversava com o
monge a respeito da guerra dos clãs.
     Deve durar muito ­ disse ele para o monge.
     O monge estava aborrecido. Fazia tempo que as caravanas estavam paradas
em Gizeh,  esperando que a  guerra  acabasse.  "Mas seja feita a  vontade de
Deus", disse o monge.
     ­ Exatamente ­ respondeu o Alquimista.
     Quando  a  panela  acabou  de  esfriar,  o  monge  e  o  rapaz  olharam
deslumbrados. O chumbo tinha  secado na forma circular da panela, mas já não
era mais chumbo. Era ouro.
     ­ Aprenderei a fazer isto um dia? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Esta foi minha Lenda Pessoal, e não a sua ­ respondeu o Alquimista. ­
Mas queria lhe mostrar que é possível.
     Caminharam de novo até a porta do convento. Ali, o Alquimista dividiu o
disco em quatro partes.
     ­  Esta é  para  você ­ disse ele, estendendo uma parte para o monge. ­
Por sua generosidade com os peregrinos.
     ­ Estou recebendo um pagamento além da minha generosidade ­ respondeu o
monge.
     ­ Jamais repita isto. A vida  pode escutar, e lhe dar  menos da próxima
vez.
     Depois aproximou-se do rapaz.
     ­ Esta é para você. Para pagar o que deixou com o general.
     O rapaz ia dizer que era muito mais do que havia deixado com o general.
Mas ficou quieto, porque tinha ouvido o comentário do Alquimista com o monge
...
     ­  Esta é para mim ­ disse o Alquimista,  guardando uma parte. ­ Porque
tenho que voltar pelo deserto, e existe uma guerra entre os clãs.
     Então pegou o quarto pedaço e deu de novo para o monge.
     ­ Esta é para o rapaz. Caso ele necessite.
     ­ Mas estou indo  em  busca do meu tesouro ­ disse o rapaz. Estou perto
dele agora!


     ­ E tenho certeza que irá encontrá-lo ­ falou o Alquimista.
     ­ Então por que isto?
     ­ Porque você já perdeu duas vezes,  com  o  ladrão e com o general,  o
dinheiro que ganhou em  sua viagem. Eu sou um velho árabe supersticioso, que
acredito nos provérbios de minha terra. E existe um provérbio que diz:
     "Tudo que acontece uma vez, pode nunca mais  acontecer.  Mas  tudo  que
acontece duas vezes, acontecerá certamente uma terceira".
     Montaram em seus cavalos.


     ­ Quero lhe contar uma história sobre sonhos ­ disse o Alquimista.
     O rapaz aproximou seu cavalo.
     ­ Na antiga Roma, na época  do imperador  Tibério, vivia um homem muito
bom, que tinha dois filhos: um era militar, e quando entrou para o exército,
foi enviado para as mais  distantes  regiões  do Império.  O outro filho era
poeta, e encantava toda Roma com seus belos versos.
     "Certa  noite, o velho  teve um sonho. Um  anjo lhe aparecia para dizer
que as palavras de um de seus filhos seriam  conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as gerações vindouras. O velho homem acordou agradecido e
chorando naquela noite, porque a vida era generosa, e havia lhe revelado uma
coisa que qualquer pai teria orgulho de saber.
     "Pouco tempo depois, o velho morreu ao tentar salvar uma criança que ia
ser  esmagada  pelas  rodas de  uma  carruagem. Como tinha  se comportado de
maneira correta  e  justa por toda  a sua  vida, foi  direto  para o céu,  e
encontrou-se com o anjo que havia aparecido em seu sonho.
     "­ Você foi um homem bom ­ disse-lhe o anjo. ­ Viveu sua existência com
amor,  e  morreu  com  dignidade. Posso realizar  agora qualquer  desejo que
tenha.
     "­ A vida  também foi boa para mim ­ respondeu o  velho. ­  Quando você
apareceu em um sonho, senti que todos os meus esforços estavam justificados.
Porque  os  versos  de meu  filho  ficarão entre  os  homens  pelos  séculos
vindouros. Nada tenho  a pedir para mim; entretanto,  todo pai se orgulharia
de ver a fama de alguém que ele cuidou quando criança e educou quando jovem.
Gostaria de ver, no futuro distante, as palavras do meu filho.
     "O  anjo  tocou no ombro do velho, e os dois  foram projetados  para um
futuro  distante. Em  volta deles apareceu um lugar imenso, com milhares  de
pessoas, que falavam numa língua estranha.
     "O velho chorou de alegria.
     "­  Eu sabia que os versos do meu  filho poeta  eram bons e  imortais ­
disse para o  anjo, entre lágrimas. ­ Gostaria que  você me dissesse qual de
suas poesias estas pessoas estão repetindo.
     "O anjo então se aproximou do velho com carinho, e sentaram-se num  dos
bancos que havia naquele imenso lugar.
     "­ Os versos de seu filho poeta foram muito populares em Roma ­ disse o
anjo. ­ Todos gostavam, e se divertiam com  eles.  Mas  quando o  reinado de
Tibério  acabou, seus versos também  foram esquecidos. Estas palavras são de
seu filho que entrou para o exército.
     "O velho olhou surpreso para o anjo.


     "­ Seu filho foi servir num lugar  distante, e tornou-se centurião. Era
também um homem justo e bom. Certa tarde, um dos seus servos ficou doente, e
estava para morrer. Seu  filho, então,  ouviu falar de um rabi que curava os
doentes,  e  andou  dias e  dias em  busca deste homem.  Enquanto caminhava,
descobriu que o homem que estava procurando era o  Filho de  Deus. Encontrou
outras pessoas que  haviam sido curadas por ele, aprendeu seus ensinamentos,
e mesmo sendo um centurião romano converteu-se à sua fé. Até que certa manhã
chegou perto do Rabi.
     "­ Contou-lhe  que tinha um servo doente. E  o Rabi se prontificou a ir
até sua casa. Mas  o centurião era um homem  de fé,  e olhando no fundo  dos
olhos do  Rabi, compreendeu que estava mesmo diante do Filho de Deus, quando
as pessoas em volta deles se levantaram.
     "­ Estas são as palavras  de seu filho ­ disse o  anjo ao velho . ­ São
as palavras que ele disse  ao Rabi naquele momento,  e que  nunca mais foram
esquecidas". Dizem: "Senhor eu não sou digno que entreis em minha casa,  mas
dizei uma só palavra e meu servo será salvo".

     O Alquimista moveu seu cavalo.
     ­  Não  importa  o   que  faça,  cada  pessoa   na  Terra  está  sempre
representando o papel principal da História do mundo ­ disse ele.
     ­ E normalmente não sabe disto.
     O rapaz  sorriu.  Nunca  havia  pensado  que a  vida  pudesse  ser  tão
importante para um pastor.
     ­ Adeus ­ disse o Alquimista.
     ­ Adeus ­ respondeu o rapaz.






     O rapaz caminhou  duas  horas e meia pelo deserto,  procurando  escutar
atentamente o que seu coração  dizia. Era ele que iria revelar o local exato
onde o tesouro estava escondido.
     "Onde estiver seu tesouro, ali estará também  o seu coração", dissera o
Alquimista.
     Mas seu coração falava em outras coisas.
     Contava com  orgulho a  história de um  pastor  que  havia deixado suas
ovelhas para seguir  um sono  que se  repetiu  duas noites. Contava da Lenda
Pessoal, e de muitos homens que  fizeram isto, que foram em busca  de terras
distantes  ou de mulheres bonitas, enfrentando os  homens de  sua época  com
seus  preconceitos e conceitos. Falou durante todo  aquele tempo de viagens,
de descobertas, de livros e de grandes mudanças.
     Quando ia começar a subir uma duna ­ e só naquele momento ­ foi que seu
coração sussurrou ao seu ouvido  ­ "esteja atento  para  o  lugar  onde você
chorar. Porque neste lugar estou eu, e neste lugar está seu tesouro".
     O rapaz começou  a subir a duna lentamente. O céu, coberto de estrelas,
mostrava de novo uma lua cheia; haviam caminhado um mês  pelo deserto. A lua
iluminava  também  a duna, num jogo de sombras, que fazia com  que o deserto
parecesse um mar cheio de ondas, e fazia com que o rapaz se lembrasse do dia
em  que  soltara  livremente um  cavalo pelo deserto, dando um bom  sinal ao
Alquimista. Finalmente a lua iluminava o  silêncio do deserto, e  a  jornada
que fazem os homens que buscam tesouros.
     Quando, depois de  alguns  minutos, chegou ao topo da duna, seu coração
deu um  salto.  Iluminadas pela luz da  lua cheia e  pelo branco do deserto,
erguiam-se majestosas e solenes as Pirâmides do Egito.
     O rapaz caiu de joelhos e chorou. Agradecia a Deus por haver acreditado
em  sua Lenda Pessoal, e por haver encontrado certo dia um rei, um mercador,
um inglês, e  um alquimista. Sobretudo, por haver  encontrado uma mulher  do
deserto, que lhe tinha  feito entender que o Amor jamais vai separar o homem
de sua Lenda Pessoal.
     Os  muitos  séculos das  Pirâmides  do Egito contemplavam,  do alto,  o
rapaz. Se ele quisesse, podia agora voltar  ao oásis, pegar Fátima,  e viver
como simples pastor de ovelhas. Porque o Alquimista vivia  no deserto, mesmo
compreendendo  a Linguagem do  Mundo,  mesmo  sabendo  transformar chumbo em
ouro. Não tinha que  mostrar  a  ninguém  sua ciência e  sua  arte. Enquanto
caminhava  em  direção  à  sua  Lenda  Pessoal,  havia  aprendido  tudo  que
precisava, e havia vivido tudo que tinha sonhado viver.
     Mas havia chegado ao seu tesouro, e uma obra só está completa quando  o
objetivo é atingido.  Ali, naquela duna, o rapaz havia chorado. Olhou para o
chão  e viu  que,  no  local onde haviam caído suas lágrimas, um escaravelho
passeava. Durante o tempo que havia passado no deserto, tinha aprendido que,
no Egito, os escaravelhos eram o símbolo de Deus.
     Ali estava  mais um  sinal.  E  o  rapaz  começou a  cavar,  depois  de
lembrar-se do mercador de cristais; ninguém conseguiria  ter uma Pirâmide no
seu quintal, mesmo que amontoasse pedras por toda a sua vida.

     Durante a noite inteira  o rapaz cavou no lugar  marcado, sem encontrar
nada. Do alto das Pirâmides, os séculos o contemplavam, em silêncio .  Mas o
rapaz não desistia:


     cavava e cavava, lutando com o vento, que muitas vezes tornava a trazer
a  areia de volta para o buraco. Suas mãos ficaram  cansadas depois feridas,
mas o rapaz acreditava em seu coração. E seu coração dissera para cavar onde
suas lágrimas caíssem.
     De  repente, quando  estava  tentando tirar algumas  pedras  que haviam
aparecido,  o  rapaz  ouviu passos.  Algumas  pessoas  se  aproximaram dele.
Estavam contra a lua, e o rapaz não podia ver seus olhos, nem seus rostos.
     ­ O que você está fazendo aí? ­ perguntou um dos vultos.
     O rapaz  não  respondeu. Mas sentiu medo.  Tinha agora  um tesouro para
desenterrar, e por isso tinha medo.
     ­ Somos refugiados da guerra dos clãs ­ disse outro vulto. ­ Precisamos
saber o que você esconde aí. Precisamos de dinheiro.
     ­ Não escondo nada ­ respondeu o rapaz.
     Mas  um dos  recém-chegados agarrou-o  e  o  puxou para fora do buraco.
Outro começou a revistar seus bolsos. E encontraram o pedaço de ouro.
     ­ Ele tem ouro ­ disse um dos salteadores.
     A lua iluminou a face de quem o  estava revistando, e ele viu,  em seus
olhos, a morte.
     ­ Deve haver mais ouro escondido no chão ­ disse outro.
     E obrigaram o  rapaz a  cavar. O rapaz  continuou cavando,  e não havia
nada.  Então  começaram  a  bater  no  rapaz.  Espancaram o  rapaz  até  que
aparecessem no céu os primeiros raios de sol. Sua roupa ficou em frangalhos,
e ele sentiu que a morte estava próxima.
     "De  que adianta o dinheiro,  se  tiver  que  morrer?  Poucas  vezes  o
dinheiro é capaz de livrar alguém da morte", dissera o Alquimista.
     ­ Estou procurando um tesouro! ­ gritou finalmente o rapaz. E mesmo com
a boca  ferida e  inchada de  pancadas,  contou  aos  salteadores  que havia
sonhado duas vezes com um tesouro escondido junto das Pirâmides do Egito.
     O  que parecia o  chefe ficou um  longo tempo em silêncio. Depois falou
com um deles:
     ­ Pode deixá-lo. Ele não tem mais nada. Deve ter roubado este ouro.
     O rapaz caiu com o rosto na areia. Dois olhos procuraram os seus; era o
chefe dos salteadores. Mas o rapaz estava olhando as Pirâmides.
     ­ Vamos embora ­ disse o chefe para os outros.
     Depois, virou-se para o rapaz:
     ­  Você  não vai morrer ­ disse. ­ Vai viver e aprender que o homem não
pode  ser tão  estúpido. Aí, neste  lugar  onde você está, eu também tive um
sonho repetido  há quase dois anos atrás. Sonhei que devia ir até os  campos
da Espanha, buscar  uma igreja em ruínas onde os pastores  costumavam dormir
com suas ovelhas, e  que tinha um sicômoro crescendo dentro da sacristia, se
eu  cavasse  na  raiz  deste  sicômoro,  haveria  de  encontrar  um  tesouro
escondido. Mas não sou estúpido de cruzar um deserto só porque tive um sonho
repetido.
     Depois foi embora.
     O rapaz  levantou-se  com  dificuldade,  e  olhou  mais uma vez para as
Pirâmides.  As Pirâmides sorriram  para  ele, e ele  sorriu de  volta, com o
coração repleto de felicidade.
     Havia encontrado o tesouro.






     O rapaz chamava-se Santiago. Chegou na pequena igreja abandonada quando
já  estava quase anoitecendo.  O  sicômoro ainda  continuava na sacristia, e
ainda  se podiam ver  as estrelas através do teto  semidestruído. Lembrou-se
que certa vez havia estado ali com suas ovelhas, e que tinha  sido uma noite
tranqüila, exceto pelo sonho.
     Agora ele estava sem o seu rebanho. Ao invés disto, trazia uma pá.
     Ficou muito tempo olhando o céu. Depois tirou do alforje uma garrafa de
vinho, e bebeu. Lembrou-se da noite  no deserto, quando tinha também  olhado
as estrelas e  bebido vinho com o Alquimista. Pensou nos muitos caminhos que
tinha andado, e  a maneira  estranha de  Deus  lhe mostrar o tesouro. Se não
tivesse acreditado em sonhos repetidos, não tinha encontrado a cigana, nem o
rei,  nem o salteador,  nem... "bom, a lista é  muito grande.  Mas o caminho
estava escrito  pelos  sinais,  e eu não  tinha como errar",  disse  para si
mesmo.
     Dormiu  sem perceber, e quando acordou, o sol já ia alto. Então começou
a escavar a raiz do sicômoro.
     "Velho bruxo", pensava o rapaz. "Você sabia de  tudo. Deixou  até mesmo
um  pouco de ouro para que eu pudesse voltar até  esta  Igreja. O  monge riu
quando me viu voltar em frangalhos. Não podia me poupar isto?"
     "Não", ele escutou o  vento dizer: "Se eu tivesse lhe contado, você não
teria visto as Pirâmides. São muito bonitas, não acha?"
     Era a voz do  Alquimista. O rapaz sorriu e continuou a cavar. Meia hora
depois, a pá bateu em algo sólido. Uma hora depois ele tinha diante de si um
baú cheio  de velhas  moedas de  ouro  espanholas. Havia  também  pedrarias,
máscaras de ouro com penas brancas e vermelhas,  ídolos de pedra  cravejados
de brilhantes. Peças de uma conquista que o país já havia esquecido há muito
tempo, e que o conquistador se esquecera de contar para seus filhos.
     O rapaz tirou o  Urim  e o  Tumim do alforje. Tinha  utilizado  as duas
pedras apenas uma  vez, quando estava certa manhã,  num mercado. A  vida e o
seu caminho estiveram sempre cheios de sinais.
     Guardou o  Urim  e  o Tumim no baú de  ouro. Eram também  parte  de seu
tesouro, porque lembravam um velho rei que jamais tornaria a encontrar.
     "Realmente a vida é generosa com quem vive sua Lenda Pessoal", pensou o
rapaz.  Então lembrou-se de  que tinha  que ir  até Tarifa, e dar  um décimo
daquilo tudo  para a cigana. "Como  são espertos os ciganos", pensou. Talvez
fosse porque viajavam tanto.
     Mas  o vento voltou a  soprar. Era  o  Levante,  o vento  que vinha  da
África. Não  trazia o cheiro do deserto, nem a ameaça de invasão dos mouros.
Ao invés disto, trazia um perfume que  ele conhecia bem, e o som de um beijo
­ que veio vindo devagar, devagar, até parar em seus lábios.
     O rapaz sorriu. Era a primeira vez que ela fazia isto.
     ­ Estou indo, Fátima ­ disse ele.




Ïîïóëÿðíîñòü: 7, Last-modified: Thu, 21 Aug 2003 17:26:13 GmT